Charles D’Ambrosio: narrativa fluente e um olhar fora do comum para detalhes triviais| Foto: Divulgação

Existe uma peculiaridade nos escritores novos dos Estados Unidos, muito visível no grupo que orbita a editora McSweeney’s, criada por Dave Eggers. Vários adoram brincar com a forma na literatura. São do tipo que escrevem uma história sem usar vírgulas ou um conto feito de páginas em branco.

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Essas experiências devem ter um público, mas é difícil encontrar alguém que consiga usar esses artifícios sem deixar que eles chamem demais a atenção. Quando funcionam, você tem um David Foster Wallace (1962-2008), de Breves Entrevistas com Homens Hediondos, talvez o nome mais influente de sua geração. Nos piores casos, o leitor pode pensar "Uau, um texto sem a letra A! Pena que a história seja uma porcaria".

A maior proeza de Charles D’Ambrosio em A Ponta, publicado pela editora Grua, é conseguir narrar histórias simples na aparência. Os personagens são comuns e tão críveis que parecem saltar das páginas. São pequenos recortes da vida cotidiana em lugares onde as pessoas não têm muito mais o que fazer além de beber, transar e... beber. Ao menos é o que aparece em "A Ponta" e "A Grande Touro-rã Americana".

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Já "O Verdadeiro Nome Dela", "Jacinta" e "Todos a Bordo" enfocam relações amorosas entre homens e mulheres que têm dificuldades para se comunicar e estão juntos sem saber muito bem por quê. Eles têm uma ideia vaga de que o amor existe, de que é preciso investir nele, mas tropeçam em vários obstáculos pelo caminho.

Em "A Ponta", as figuras construídas por D’Ambrosio habitam uma cidade litorânea. O protagonista, um jovem adolescente que acorda no meio de uma festa da mãe, tem uma função peculiar: ele acompanha todos os convidados bêbados da festa na volta para suas casas.

É assim que se vê num percurso difícil com a sra. Gurney, uma mulher de quase 40 anos que vive um turbilhão de problemas pessoas e acaba até assediando o garoto no meio da praia, pouco antes de tentar se matar no mar. Dito assim, parece dramático, mas a sra. Gurney está bêbada como um gambá e as cenas conseguem aliar humor e lirismo.

As referências são sempre as mesmas. Por falar de infância e adolescência, D’Ambrosio assume uma voz que remete a J.D. Salinger, autor de O Apanhador no Campo de Centeio e criador da família Glass.

Em "A Grande Touro-rã Americana", dois jovens se desdobram para conseguir uns trocados e entrar na festa de um grupo mais velho. Um deles acaba convidando uma garota – e é censurado pelo amigo. Depois, numa conversa com o pai, descobre que a menina pode ser mais do que uma mera transa atrapalhada numa noite gelada.

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"Jacinta" é o nome da criança que Dorothy está esperando e é por causa dela que se casa com Bill, com quem passa a viver em uma casa no campo. O bebê nasce e, pouco mais de um ano depois, morre em um incidente banal: se afoga em um cocho que a chuva encheu de água no dia anterior.

A morte da criança afeta a relação do casal, gerando uma crise invisível que consegue corroer o cotidiano dos dois. Até que um deles chegue ao limite.

História que se passa na estrada, "O Verdadeiro Nome Dela" acompanha a fuga de um homem com uma garota que conhece em um posto de beira de estrada. Ela tem um pai muito religioso e está cansada da rotina modorrenta que leva. Decide escapar com um estranho e só mais tarde revela a ele que sofre de câncer. Ela não tem muito mais tempo de vida e as descrições dos efeitos que a doença tem sobre o seu corpo são perturbadoras.

A morte reaparece em "Todos a Bordo", em que um casal, Neal e Sarah, sofre um abalo ao saber do fim de um conhecido chamado Flajole – na verdade, um ex da mulher, que agora espera um bebê de Neal.

O senso de D’Ambrosio para minúcias é uma das coisas mais envolventes em seus contos. Numa cena, em meio a um momento de crise, a mulher que lava a louça percebe que sempre esfrega os pratos no sentido anti-horário, como se, no íntimo, desejasse que o tempo regredisse para quando os problemas não existiam.

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Apesar de fazer parte do universo McSweeney’s – colaborando, por exemplo, para a revista The Believer, editada por Vendela Vida, mulher de Eggers –, o modo de escrever de D’Ambrosio é livre de todo tipo de tiques pós-modernos. A narrativa é limpa e fluente, e as histórias, bem contadas.

Serviço

A Ponta, de Charles D’Ambrosio. Grua, 248 págs., R$ 36.