Embora afeito a uma prosa de mais fôlego, o escritor gaúcho João Gilberto Noll chega aos 60 anos com um livro de contos, gênero que considera mais sofisticado estruturalmente. Em A Máquina de Ser (Nova Fronteira, 160 págs, 22 reais), mais recente de seus 14 livros, os personagens masculinos e de meia-idade que permeiam seus romances – entre eles, Harmada (1993) e Hotel Atlântico (1989) – entram e saem dos 24 contos, protagonizando instantes de vidas apartadas de outras criaturas humanas pela solidão, um dos temas explorados pelo autor. Nesta entrevista ao Caderno G, Noll fala sobre o novo livro e a respeito desses personagens que, na verdade, são variações de um só: seu próprio alter-ego, pelo qual declara-se apaixonado.

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Em seu novo livro, A Máquina de Ser, parece haver um diálogo entre todos os contos. Quando escreveu os 24 contos, você os criou já imaginando que eles deveriam compor o livro?

João Gilberto Noll – Comecei a escrever esses contos, quinzenalmente, para o Correio Braziliense, no caderno de cultura Pensar. Aos poucos, no entanto, fui sentindo que vinha vindo um livro de contos. Então me dividi em duas tarefas: o meu livro de contos em formação para um volume e os contos que eu continuava produzindo para o jornal. Esses últimos se mantêm inéditos. Sendo assim, os contos que hoje compõem o livro A Máquina de Ser são de fato uma espécie de constelação, em que cada conto dialoga com outro, um possível par. De fato, não são contos esparsos, mas componentes da mesma banda, digamos. Isso talvez esteja refletindo a minha vocação de romancista. Pois não há somente a relação de um conto com o outro, mas a tessitura de uma narrativa subterrânea, oculta, debaixo de um arquipélago de pontos ficcionais.

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Por que o título A Máquina de Ser para o livro? Tem a ver com o conto que leva o mesmo nome?

Claro, tem a ver com o conto homônimo. Mas por que privilegiei este título dentre tantos outros? Em primeiríssimo lugar porque tudo com ressonâncias metafísicas me interessa. Hoje sou um ateu, mas já fui coroinha, cantor de igreja etc. Num caso assim, a sua tendência é, ao matar Deus, se transferir para um universo de indagação filosófica, como o ser, o estar, o parecer, o se dissolver. E não há dúvida de que permeia pelo livro inteiro a existência de personagens com dificuldade de sair de um certo alheamento, de uma certa flutuação que os deixa apartados de outras humanas criaturas. A máquina de ser então condensa novamente o aparelho mental dos personagens, lhes dá uma forma para convívio cidadão. É a volta da máquina, a possibilidade de uma identidade funcional.

Os contos parecem ser pensamentos instantâneos de pessoas solitárias que, em sua imaginação, não separam a realidade, o desejo e a alucinação. Esta é uma forma de refletir a angústia e a solidão das pessoas frente à condição humana?

A condição humana é para heróis, não há dúvida. A cada dia convivemos, por escolha ou não, com vários pequenos heróis, heróis que precisam ir ao dentista, botar o gesso no pronto-socorro, gente que precisa dizer ou ouvir o "não te amo". Gente que precisa atuar em meio a pequenas e grandes aflições. Essas tais de 24 horas guardam um tal grau de tensões e impossibilidades, que é justo se esperar escapes de todos os tipos, delirantes ou não. No conto "Monges", por exemplo, o protagonista tem uma ejaculação involuntária em pleno shopping. Sua calça fica alagada e ele é obrigado a sentar a uma mesa na praça de alimentação. É um ríspido soluço gozoso. Esse homem está gratificado pela rotina, mas sua história não termina aí. É no banheiro do shopping que ele encontrará seu épico da tarde. Diante desse épico ele será obrigado a desertar, se recolher.

Os personagens de muitos dos contos lidam com a morte de pessoas próximas, como em "Noturnas Doutrinas", "Cor de Nada", "Rudes Romeiros", "Na Divisa". Por que usar a morte para falar de vida, do "ser"?

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Acho que essa coisa de se ver tudo dentro do diapasão pessimista ou otimista é muito redutor. No meu livro há pequenas celebrações, mesmo no horário de expediente. Basta lembrar do conto "Marabá", no qual uma mulher desempregada vai uma tarde ao cinema e se sente atraída pela sombra de um homem ao lado dela. Logo depois ela entra com ele num hotel. E nem transam. Ela passa a mão pelo veludo da calça do estranho. Nada muito além disso. Mas, mesmo ao viver esses instantes supremos, não há como se esquecer da poeira levada pelo vento.

Em todo os contos os personagens parecem concentrados em executar rituais. Esta seria a forma de o homem tentar entender/superar suas questões?

O ritual é a lembrança de que somos animais enredados na rede do simbólico. É isso que nos diferencia de outros animais. E é por isso que o cotidiano não consegue nos brutalizar de vez. Voltando ao conto "Monges", aquele homem que se vê alagado em pleno shopping, não foi surpreendido por sua biologia apenas no sentido do gozo súbito, mas principalmente porque "viveu" a ressurreição de algo entalado em seu ser. A sua eventual excitação não é maior do que sua surda redenção, ainda mais presente ao fim do conto. O simbólico é aquilo que nos alivia de tempos em tempos desse peso de estarmos a meio caminho entre a condição de natureza e a de cultura. O rito do simbólico é o instante em que esse peso fica leve e se celebra e se ganha muito com isso. Ninguém sai do rito o mesmo.

Também há contos com protagonistas que são pais e que lidam com a paternidade/maternidade de uma maneira pouco usual. É o caso de "No Dorso das Horas", "Em Nome do Filho" e "Nado Livre". Por que este interesse em explorar a questão da paternidade/maternidade?

A razão eu não sei. Mas a tendência de me fixar ao tema da filiação é muito grande, sim. Já está presente, por exemplo, no meu primeiro livro O Cego e a Dançarina, no conto "Alguma Coisa Urgentemente", que deu no belíssimo filme de Murilo Salles Nunca Fomos tão Felizes. É a questão paterna, não apenas em sua abrangência de laços humanos, mas também numa acepção teológica, já que o rapaz cobra do pai a verdade de sua história, de seu estar no mundo. Uma teologia materialista, é bom que se diga, mas que instiga no garoto uma candente curiosidade. Curiosidade vertical que ele logo se dará conta que é vã.

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Seus livros, em sua maioria, são romances ou textos mais longos. Como foi a experiência de escrever textos enxutos e, ao mesmo tempo, densos?

Sinto mais prazer na escrita de uma narrativa longa. O movimento de se transportar para esse rio ficcional é mais duradouro, você é obrigado a se encarnar naquele cara cuja vida eu demonstro, dia a dia, no seu papel de personagem. Eu tenho um amor profundo por esse meu homem que venho demonstrando de livro a livro. Mesmo que ele me extenue muitas vezes, ele pode contar comigo na alegria e na desdita. Sim, é uma espécie de casamento. Na feitura dos contos, ele aparece muitas vezes, mesmo quando os personagens são femininos. A sua flexibilidade é extraordinária. Sempre que eu preciso dele, ele vem para me atuar, preparado que está. Então, como eu dizia, na escrita de um livro de contos esse homem vem e some, já que seu trabalho se arrefece quando o conto se fecha. Mas o bom do conto é que ele te dá mais condições de brincar em termos de forma. O romance pede mais de você um trabalho de estiva. O romance está mais ligado me parece à história, à memória. O conto é muitas vezes um soluço, algo em condições de ser mais requintado estruturalmente. Relâmpagos, sim.

Seus personagens costumam ser homens, creio que acima dos 50 anos. Eles seriam uma espécie de alter-ego do autor?

São alter-ego do autor, sim. Mas talvez sejam muito mais do que isso. Eles representam o homem que eu nunca conseguirei ser. Ele é o herói que eu não sou. Não o vejo como anti-herói. Se eu conseguisse atravessar as jornadas em que ele avança a cada novo livro, eu seria um sujeito e tanto. Poderás pensar que eu sou apaixonado por ele. E eu te digo que de fato sou.

"Rudes Romeiros" e "Cor de Nada", entre outros contos, têm protagonistas que extrapolam os limites da patologia. Todos os personagens do livro parecem meio deslocados do mundo. Falar da doença e das neuroses humanas é uma forma de refletir sobre a questão do ser?

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Falar de doença é uma obsessão da literatura ocidental. O Werther, A Montanha Mágica, o O Apanhador no Campo de Centeio não me deixam mentir. Acho que é mais ou menos como a questão de se falar da vida pela ótica da morte. Já se falou muito do gênero romance, como foi o caso do pensador marxista, Lukács. Ele encaminhou à cena o conceito de herói problemático, alguém doentio, que sofre de alienação, pois pensa poder transformar o mundo de forma solitária, desagregada do mundo social. Não podemos esquecer ser o romance um gênero que tomou vulto com a Revolução Burguesa, o início da apoteose do individualismo, exposta, sim, às inúmeras patologias do ser.