Romance
A Máquina de Madeira
Miguel Sanches Neto. Companhia das Letras, 248 págs. R$ 36.
Há um misto de verdade, pessimismo e história em A Máquina de Madeira, nono romance de Miguel Sanches Neto. O paranaense de Bela Vista do Paraíso, com lupas apontadas para o passado, revisita o Brasil do final do século 19. Lá, encontra um país atrasado e discrepante. É nesse cenário, mais precisamente no Rio de Janeiro de 1860, que se desenrola a narrativa que tem um protótipo de máquina de escrever como protagonista.
A obra retoma a trajetória do padre paraibano Francisco Azevedo (1814-1880), suposto inventor da máquina de escrever na verdade, de taquigrafia. O padre solitário, e frágil frente às tentações de meretrizes mulatas, deixa o Recife rumo ao Rio de Janeiro para mostrar seu invento na Exposição Nacional de 1861, evento organizado por Dom Pedro II.
Sanches discute a inserção de um artigo de luxo e simbolicamente importante em um país com resquícios de colônia, agrário e escravocrata. Azevedo tem a consciência da relevância de sua invenção. E também da dificuldade em superar as enormes barreiras sociais e religiosas que ajudavam a definir o Brasil Imperial como um lugar exótico e tosco. Pois, quando surgem os primeiros comentários sobre o seu invento, até mesmo os que saem da boca do padre Azevedo, eles são emblemáticos e desapontadores. "A máquina é uma das revoluções do século 19 e com ela os sermões e discursos poderiam ser transcritos com agilidade até então desconhecida".
Dividido em duas partes (Londres e Nova York), o romance histórico também é polifônico. Existe a voz do narrador sóbrio e com algum cacoete imperialista ; relatos históricos propriamente ditos, como recortes de jornais que noticiam igualmente a fuga de um escravo e o desaparecimento de uma cabrita; e relatos em primeira pessoa, alguns deles digressivos. São nesses capítulos que sabemos que o padre é órfão e encara o sexo como algo potencialmente interessante.
Na medida em que as tentativas para tornar a grande máquina de madeira mais conhecida e valorizada não dão em nada, o narrador começa a tecer uma crítica feroz àquele Brasil atrasado. Na exposição em que a máquina é revelada ao público, por exemplo, surge um grande tronco de madeira, que, se não fosse pela intervenção providencial de oficiais, ocuparia o mesmo espaço nobre que a invenção do padre. No tronco, "poderiam caber até cinco escravos grandes, amarrados pelos pés ou pelas mãos."
Interessante é perceber a consciência de Azevedo que, mesmo padre, questiona os limites da Igreja naquele Brasil confuso. "Deus, me perdoe, mas em todos os lugares são muitas igrejas. Mais até talvez do que os pecadores precisem." Antecipando nosso complexo de vira-latas, as inovações de Azevedo são levadas clandestinamente aos Estados Unidos, que industrializam o invento, deixando o padre fora da história.
Em A Máquina de Madeira, Miguel Sanches Neto, enfim, estuda os motivos históricos para o Brasil ser o país que é. Sua máquina de escrever, naquele tempo, era como uma pérola jogada aos porcos. Mas complicado mesmo é perceber que, no Brasil de hoje, os livros ocupam esse papel. De acordo com a terceira edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, deste ano, o brasileiro lê apenas 2,1 livros por ano até o fim. O mais lido é a Bíblia. GGG