Foi meio na sorte: a partitura surrada dividia dois cadernos recheados de documentos e anotações históricas, entregues ao pesquisador Gehad Hajar por Gedeão Martins (1923-2012), ex-maestro da Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná. “Ele me passou por debaixo da porta. Às vezes as coisas caem na minha mão”, explica Gehad, também proprietário do Teatro Cine Gloriáh.
Na folha de papel “em péssimo estado” constavam letra e música do que se considera o primeiro hino de Curitiba, composto em 1928 por Benedito Nicolau dos Santos (1878-1956). Restaurada pelo maestro Jaime Zenamon, a obra será executada nos próximos dias 28 e 29 de março pela Camerata Antiqua de Curitiba, como parte das comemorações do aniversário de 322 anos da cidade.
O achado musical (de 2012) é de uma importância histórica retumbante. Nos anos 1920 e 1930, o Hymno de Curityba era uma ode à cidade. Executado após eventos culturais e políticos, servia como fio condutor para a legitimação do Movimento Paranista – capitaneado por Romário Martins (1874-1948) e uma trupe animada que contava com João Turin, Zaco Paraná, Benedito Nicolau dos Santos, Laertes Munhoz, Emiliano Perneta e Nilo Cairo.
O Paranismo surgiu na esteira do sucesso econômico da erva-mate para exaltar os feitos políticos e culturais do estado, e foi interrompido pelo “modernismo” do interventor Manoel Ribas e também pela unificação do poder no país com a Revolução de 1930 que, entre outros feitos totalitaristas, extinguiu os hinos municipais.
Ao mesmo tempo, a descoberta de uma obra tão importante após 87 anos revela o recorrente descaso pelo patrimônio cultural. “É difícil localizar a música paranaense porque ela não está consolidada. Não há senso identitário musical. Não existe um livro chamado A Música do Paraná”, brada Gehad. Confirmando a teoria: o hino atual (“Cidade linda e amorosa/ Da terra de Guairacá”) foi oficializado somente em 1998.
“A única tristeza é que esse presente veio só agora”, diz FCC
A Fundação Cultural de Curitiba (FCC) recebeu como “um presente” a descoberta do primeiro hino de Curitiba. “A única tristeza é que esse presente veio só agora, a poucos dias do aniversário da cidade”, diz a diretora de Relações Institucionais do órgão, Mirele Camargo. As cópias originais chegaram à FCC há cerca de duas semanas. Dias depois, a veracidade do material foi atestada. De acordo com Mirele, a FCC não sabia da existência da obra. “Há uma série de documentos históricos que não estão aqui porque eram de acervos particulares”, diz. No evento da semana que vem, a execução do Hymno de Curityba, somente com piano e coro, será um bônus ao programa da Camerata, que na ocasião inicia seu programa anual.
Curityba, faceira,/ Brilha e fulge radiosa/ N’um sorriso do céu sempre azul/ Curityba do meu Paraná/ Outro encanto no mundo não há
Mentira
Benedito Nicolau dos Santos – coautor de A Vovozinha, primeira opereta infantil do Brasil, escrita por Emiliano Perneta em 1909 e musicada em 1917 –foi considerado pelo poeta Mário de Andrade como “o maior musicólogo do país.” O maestro compunha também maxixes e polcas, dois dos estilos fundadores da música popular brasileira. O Hymno de Curitiba, que originalmente fazia parte da ópera Marumby, é uma peça de caráter popular, com letra edificante. E também “mentirosa”: “Curityba faceira/Brilha e fulge radiosa/N’um sorriso do céu sempre azul”, diz a ode. A peça provavelmente foi composta no inverno, época em que o céu normalmente está mesmo “de brigadeiro”. “Mas a primeira apresentação, ao que parece, foi em dezembro do mesmo ano”, explica Gehad. “E todos sabem que Curitiba era um grande banhado, porque chove muito.”
Em tempos de protestos na sacada e pedidos de intervenção militar, a descoberta também levanta questões patrióticas. “Após a ditadura, passamos a associar tudo que é cívico ao militarismo. Precisamos separar as duas coisas”, diz Hajar, paranista temporão. “O que nos falta é o modernismo do Oswald de Andrade, uma cultura de exportação do que é nosso.”
Capela Santa Maria (R. Conselheiro Laurindo, 273). Programa: Cantata BWV 4 – Christlag in Todesbanden, Oster-Oratorium BWV 249 e Hymno de Curityba*. Regência de Luís Otávio Santos (MG). Palestra de Osvaldo Colarusso. Dias 28 às 20h e 29 às 18h30. R$30 e R$15 (meia). *Pré-concerto com piano e coro: dia 28 às 19h15 e dia 29 às 17h45.
Após os concertos do próximo fim de semana, a ideia é distribuir as partituras restauradas a colégios de Curitiba. Para que o patrimônio cultural circule, e exista de fato.
Influenciada por Verdi e Puccini, obra sugere uma pré-bossa nova
O maestro Jaime Zenamon, corresponsável pelo resgate do hino de Curitiba, teve de encarnar Benedito Nicolau dos Santos durante mais ou menos uma semana. Interpretou flechinhas, rabiscos e notas na expectativa de ser o mais fiel possível. Surpreendeu-se: “O coro estava separado por gênero. Havia indicações de ‘meninos’ e ‘meninas’. Há também um rallentando [movimento ao piano em que se reduz gradativamente a velocidade da melodia] muito estranho porque se tratava de um hino”, diz Zamenon, ex-regente da Orquestra Sinfônica de Berlim, da Galatea Ensamble (Nova York) e fundador da cadeira de Violão na Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
A peça restaurada revela um compositor popular, “sem muita consistência pianística”, embora ao mesmo tempo sofisticado – há influência das óperas de Giuseppe Verdi (1813-1901) e Giacomo Puccini (1858-1924). Curiosidade: há uma sequência de acordes muito brasileiros, que harmonicamente sugerem uma espécie de bossa nova, em uma época em que nem se ouvia falar disso.
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