A vida do espírito, expressão que dá nome a um dos mais expressivos ensaios de Hannah Arendt, nem sempre se realiza. O que pensamos às vezes sequer é percebido pelos outros. Mais que isso: traduzir o que se passa no imaginário é uma Guerra de Troia. O que os outros pensam a nosso respeito raramente coincide com a imagem que temos, e fazemos, a respeito do que somos, ou pensamos ser.
Essas inquietações, e muitas outras, estão sugeridas em Uma Solidão Ruidosa, do escritor checo Bohumil Hrabal. O romance apresenta o depoimento dos últimos anos de Hanta, um sujeito que, como ele mesmo repete continuamente durante a narrativa, passou os últimos 35 anos compactando papel usado, atividade que o autor realizou para sobreviver durante um período de sua vida em Praga.
Hanta passou a maior parte de sua jornada profissional, durante mais de três décadas, repetindo movimentos que poderiam ser feitos por máquinas. Mas, no tempo livre, ele foi um leitor. No entanto, o patrão pouco se importava se, no tempo de folga, o empregado sentava em uma cadeira para ler ou ingerir bebida alcoólica. De fato, quando não estava lendo, Hanta bebia muita cerveja.
O que a narrativa evidencia, e é relevante para a compreensão do ponto central do livro, é que ninguém, absolutamente nenhum personagem, demonstra interesse pelo que o protagonista fez, faz ou deixa de fazer. A narração, em primeira pessoa, tem a finalidade de registrar a passagem de Hanta pelo planeta.
Se ele não contasse, pela narrativa, ninguém saberia o que se passou em seu mundo interior. A educação inconsciente, não-sistematizada, resultado de leitura permanente de obras literárias, fez com que ele desenvolvesse uma visão crítica em relação a inúmeras questões, da política à estética, das relações trabalhistas ao amor.
Uma das muitas qualidades deste livro é a brevidade. São (apenas) oito fragmentos contínuos, que totalizam 106 páginas na edição brasileira, e o romance (já) acaba. Hrabal conseguiu ser breve e ao mesmo tempo intenso e hoje, período histórico em que muitos alegam não terem mais tempo, obras como Uma Solidão Ruidosa podem ser uma solução para os que gostam de ler e não estão dispostos a enfrentar calhamaços.
Outro aspecto positivo de Uma Solidão Ruidosa é que o livro aponta para uma nuance que diz respeito a todo ser humano: a solidão. Comentam, e faz todo o sentido: o homem nasce e morre só. E, descontando fogos de artifício, trios elétricos e eventuais micaretas, todos, sem exceção, atravessamos a existência tendo de conviver com o inevitável, e muitas vezes necessário, estado que é o estar só.
Hanta é o homem só por excelência, mais até do que o Robinson Crusoé sem radinho de pilha, expressão recorrente que o dramaturgo Nelson Rodrigues usava para se referir à solidão. O protagonista deste romance checo compactou papel e acabou sendo compactado pelo destino de quem, entre sistoles e diástoles, não conseguiu externalizar uma ruidosa vida interior, e devido a isso foi condenado a um irreversível ostracismo social. GGG
Serviço
Uma Solidão Ruidosa. Bohumil Hrabal. Companhia das Letras. 106 págs. R$ 33. Romance.
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