O gênio sai da lâmpada.
Em abril de 2011, entrei na Sala São Paulo para, finalmente, depois de 20 anos como ouvinte, assistir a um primeiro concerto de Keith Jarrett. Não é uma situação corriqueira: o músico se apresentou pouquíssimas vezes no país, às vezes em intervalos de mais de uma década.
Na entrada, recebo um panfleto, informando que o concerto será gravado. O produtor Manfred Eischer, proprietário do selo alemão ECM, grava todas as improvisações em piano solo: nunca se sabe quando a inspiração virá. O panfleto também instrui o público a não tirar fotos nem filmar durante a apresentação e, antes do espetáculo começar, um aviso sonoro repete as mesmas instruções.
Jarrett é famoso por ser chatíssimo – por diversas vezes interrompeu o espetáculo para reclamar que a plateia estava tossindo demais.
Keith Jarrett, um pianista imprevisível
Homem que levou a improvisação a extremos nunca explorados no jazz ou em qualquer outro tipo de música, fez 70 anos. Os últimos 40, ele passou subindo ao palco sozinho sem nenhuma ideia do que vai acontecer
Leia a matéria completaApesar da arquitetura deslumbrante da Sala São Paulo, que costuma acalmar e anestesiar os sentidos, há um clima de apreensão no ar. Ver um Steinway solitário no palco sem ter a menor ideia de que tipo de música vai sair dali não é propriamente uma situação reconfortante.
Em entrevistas recentes, Jarrett tem dito que seus concertos são cada vez mais impossíveis – não é fácil fazer improvisações livres por décadas a fio, em centenas de apresentações ao vivo, sem se repetir. Como ele costuma brincar, nem sempre o gênio sai da lâmpada.
Jarrett, um homem de pequena estatura, entra no palco. Uma explosão de palmas ilumina o recinto – muitos ali esperaram aquele momento por toda uma vida. Ele está com óculos escuros redondos à la John Lennon – a moda não é o forte dele e às vezes uma berrante camisa colorida, no melhor estilo turista americano, pode aparecer no palco fazendo par com um tênis meio sujo e indecente.
Impressões sobre a genialidade
A grande música é uma arte seletiva — a maioria das pessoas que um dia resolveu aprender piano nunca chegará nem perto de interpretar uma sonata de Beethoven ou de inventar como Monk
Leia a matéria completaAs primeiras peças são quase um aquecimento. Algumas são atonais, em que a melodia fica vaga e suspensa, outras próximas de peças que já ouvimos em gravações anteriores.
No início, há um clima intimista e o piano toca em surdina – tal como nos concertos clássicos, não há amplificação do instrumento. Aos poucos, Jarrett vai se soltando e a comunhão entre piano e pianista é carnal, pornográfica: ele pode tocar em pé, eventualmente marcar o ritmo batendo os pés no chão, fazer caretas. Não é muito bonito de se ver e, para completar, tal como Glenn Gould fazia, ele dá grunhidos de prazer e êxtase.
Nos últimos anos, os ruídos diminuíram – provavelmente sintoma da idade. Em uma das peças, ele para de tocar bruscamente, não está satisfeito com o resultado. Ele então entrelaça as duas mãos, deixa ambos os polegares para cima, e, num claro gesto de superstição, faz um ziguezague com os braços, passando as mãos entrelaçadas como quem varre o teclado do piano.
As composições são breves, o que é típico desde o álbum “Radiance”, de 2002. Metade do concerto não foi propriamente original. Mas a outra metade foi a experiência mais próxima da transcendência que um agnóstico como eu poderia experimentar. De onde veio aquilo, com que naturalidade e espontaneidade aquelas lindas canções surgiram? Jarrett é sobretudo um cancionista – o melhor de sua música não aparece quando ele busca a complexidade, mas quando ele dá vazão à sua incrível habilidade melódica, embrulhada ou em um clima intimista ou em uma sedutora marcação rítmica, na melhor tradição do jazz.
Após o primeiro bis, uma pessoa da produção aparece no palco e afirma que o músico voltará caso as pessoas parem de filmar e fotografar. O público não obedece, Keith Jarrett não volta, e eu começo finalmente a perceber que não estava mais no paraíso, mas no Brasil.