A morte, mais do que um dos grandes mistérios da existência, é um dos temas mais instigantes para um escritor. Críticos e especialistas em literatura dizem que, além do amor, a morte é o tema que mais deflagra relevantes e perenes obras. De poemas célebres, basta ler os textos de Carlos Drummond de Andrade, a contos magistrais a vasta produção de Guy de Maupassant confirma a tese.
A lista de autores que fizeram da morte matéria-prima para a ficção é infinita. A morte, tabu no Ocidente, é (como dizem) a única certeza da vida, constatação que assusta e ao mesmo tempo seduz o imaginário.
O escritor mineiro Carlos de Brito e Mello fez da morte o ponto de partida, o meio e o fim de A Passagem Tensa dos Corpos. O romance escrito por este autor é, no mínimo, sublime.
O adjetivo se justifica por vários motivos. A começar pela evidência: Mello é um jovem autor, professor, pesquisador, artista plástico que anteriormente havia publicado apenas o livro de contos O Cadáver Ri dos Seus Despojos, em 2007.
A Passagem Tensa dos Corpos, por sua vez, surpreende. A longa narrativa resulta de um projeto literário complexo, ambicioso e original. O enredo, por si só, já é uma façanha. O narrador é misterioso.
O leitor fica sabendo, somente depois da metade da narrativa, que o narrador morreu asfixiado. Mas, desde o início do texto, o sujeito que narra, em primeira pessoa, vaga pelo mundo físico (criado por Carlos de Brito e Mello). Um espírito? Mais que isso, um "tipo" de energia que precisa, com, urgência, de um corpo físico para retornar à vida.
O enredo se passa em meio à penumbra. A maior parte da narrativa acontece dentro de uma casa. O chefe e eventual provedor da família, identificado como C, morreu, possivelmente envenenado, e o seu corpo (sem vida) está amarrado em uma cadeira na sala. Enquanto C se decompõe, a viúva e a filha ignoram o cadáver, e conversam sobre assuntos secundários, uma vez que deveriam providenciar um enterro.
A voz do narrador é crítica e há muitos comentários a respeito de aspectos da vida contemporânea: a fragilidade e a brevidade das relações (amorosas, por exemplo) são recorrentes no discurso.
Mas há um outro aspecto relevante no romance: a linguagem.
O livro foi dividido em 156 capítulos curtos, de uma ou duas páginas, em média. Os blocos de texto são breves, mas intensos e contundentes. E entre uma e outra cena, há capítulos de passagem, em que são citadas mortes que acontecem cotidianamente em cidades mineiras.
Se o personagem C foi vítima de veneno (fato não confirmado, apenas uma hipótese), habitantes de municípios do estado de Minas Gerais são apresentados como estatística e vítimas fatais de doenças, assassinatos, incidentes variados. E o recurso, inserir esse boletim de ocorrências em meio à trama principal, funciona e reforça ainda mais o clima tenso, e intenso, do projeto literário de Mello.
No entanto, e acima de tudo, há uma grande tese, metáfora e ironia, revelada nos momentos finais do livro. O narrador afirma que só narra porque está morto, e sem condição de viver. E mais: ele, o narrador, conta que vai deixar de narrar porque vai se apropriar de um corpo físico (o corpo de C) e, quando isso acontecer, ele "será" apenas ação, e não vai mais enunciar palavras o que dialoga com uma ideia que diz que é difícil conciliar vida e literatura.
Desde já, ainda nos primeiros 20 dias de 2010, e A Passagem Tensa dos Corpos é candidato a livro do ano, e tem condições de disputar (e faturar) prêmios literários. GGGG
Serviço
A Passagem Tensa dos Corpos. Carlos de Brito e Mello. Companhia das Letras. 250 págs. R$ 43.
Alcolumbre e Motta assumem comando do Congresso com discurso alinhado a antecessores
Hugo Motta defende que emendas recuperam autonomia do Parlamento contra “toma lá, dá cá” do governo
Testamos o viés do DeepSeek e de outras seis IAs com as mesmas perguntas; veja respostas
Cumprir meta fiscal não basta para baixar os juros
Deixe sua opinião