A morte tem essa mania irritante de ser absoluta e democrática. Não há relatividade na morte, e ela contraria o nosso tempo e todas as nossas modas. Quando soube da morte do poeta e amigo Herberto Hélder, na segunda-feira passada, já era terça-feira e perfazia apenas 48 horas que tinha regressado de Lisboa a Curitiba. Mais ainda: horas antes de embarcar em Lisboa, tinha passado três dias na terra que viu nascer o poeta, Funchal, na Ilha da Madeira, e inevitavelmente ele esteve presente nas conversas e na memória, mal sabendo todos nós que nos despedíamos dele. Mas mais ainda: duas semanas antes tinha estado com a sua afilhada, a Cláudia, com quem juntos acendemos tantas tardes. Ela dizia-me que tinha saudades desse tempo nosso, desse tempo em que as tardes falavam. Tinha ainda mais saudades de quando ela era bem jovem e o poeta lhe dizia, em público, mais carinhosa do que sensualmente “és a minha Lo-li-ta”, invocando assim um dos seus livros preferidos e trazendo-nos a todos para dentro desse universos de Nabokov. E eu, que tanta resistência tinha a esse escritor russo, mais pelas suas entrevistas do que pelos livros, lá me vi dentro de Lolita, pois tornara-se uma extensão da própria vida.
Só conheci pessoalmente o poeta depois dele ter telefonado ao meu editor, acerca de um livro meu. Ainda assim não foi fácil a minha aproximação. Herberto Hélder era maior que Portugal. Foi quase arrastado pelo escritor Pedro Paixão, que entrei num café perto da minha antiga editora, onde estava o poeta com um seu amigo de sempre, o tradutor Aníbal Fernandes. Não era difícil falar com o poeta, ele era afável, difícil era vencer a timidez e o medo que a dimensão da sua poesia causava em todos nós.
Inventa-se também que o pênis dele crescia de tamanhos muito diferentes consoante a mulher que amava, pois as mulheres eram sempre uma extensão dos seus poemas. E os poemas dele eram filhos a crescerem por dentro de mães. Conta-se ainda que o mundo nasceu de uma metáfora do livro A Colher na Boca, mas pode ser que não passe de um exagero, como tudo o que vale a pena nesta ou em qualquer outra vida. O poeta era uma árvore, quando o queria ser; era uma flor se escrevesse flor. E era acima de tudo, ao longo dos poemas longos, o prazer que sonhámos um dia dar às mulheres. Escreveu, no início de um conto, do seu único livro de prosa, Os Passos em Volta: “Se eu quisesse enlouquecia”. Se ele quisesse.
Herberto Hélder abriu valas na topografia do mundo, para poder ver-lhe o interior; as raízes, as veias, o sangue, o magma, o escuro, o mistério, o nada. Herberto Hélder foi ao estrangeiro por um ano e veio-se embora, pois em qualquer pequeno canto se pode morrer e escrever poesia.
Herberto Hélder é considerado quase unanimemente o poeta português mais importante depois de Fernando Pessoa. Nasce no Funchal em 1930 e morre em Cascais (Lisboa) em 2015, com 84 anos. E este parágrafo não nos diz rigorosamente nada.
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