Documentários: compromisso e perspicácia
Documentarismo e engajamento parecem irmãos siameses que nasceram colados e, quando muito, foram separados à força e com muitas seqüelas. Desde os primeiros filmes documentários, existe uma tradição de posturas engajadas, especialmente o engajamento sociopolítico, apesar de hoje também ser constante o engajamento ambiental. Esse tipo de proposta está vinculada ao senso-comum de que os documentários são representações baseadas na realidade e, como tal, devem ser importantes ferramentas para destacar questões consideradas fundamentais pelos documentaristas.
Grão de areia
Na quarta-feira (8), a platéia da 3ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul assistiu, na retrospectiva histórica, ao documentário colombiano Delinqüente (Gamin, 1978), de Ciro Durán. O diretor, impressionado com a explosão demográfica em Bogotá, que impulsionou meninos e meninas a tentar a sobrevivência nas ruas, se aliou à Cruz Vermelha e entrevistou 20 crianças em situação de risco social.
Com algo para dizer
Há no filme Missing O Desaparecido (1982), thriller político do cineasta grego Costa-Gavras, um momento particularmente perturbador para nós brasileiros. A trama tem como ponto de partida o sumiço de um jovem ativista norte americano no Chile durante a ditadura do general Augusto Pinochet. Quando o pai e a esposa do rapaz, vividos por Jack Lemmon e Sissy Spacek, vão ao Estádio Nacional de Santiago, para onde os presos políticos eram conduzidos para serem interrogados e, não raro, torturados, ouve-se, em alto e bom som, um dos agentes falando português do Brasil sem sotaque. É uma referência breve, porém inequívoca, à Operação Condor, compartilhada pelos governos militares na América do Sul para deter os avanços da esquerda no continente.
Há quem diga que o cinema político, ou engajado, esquece-se de ser arte, tornando-se mero panfleto destituído de valor artístico. Mas seria heresia rotular de forma tão redutora filmes de cineastas como o russo Sergei Eisenstein, autor de uma das obras-primas da sétima arte, O Encouraçado Potemkin.
O filme de 1925 não disfarça seu engajamento na Revolução Russa de 1917 desde o começo, em que o letreiro divulga uma frase de Lênin defendendo a revolução como a única guerra justa. Se, por um lado, Eisenstein colocou o cinema à serviço da propaganda ideológica, por outro, inovou artisticamente. Principalmente, ao propor uma estrutura de edição cinematográfica que até hoje é utilizada. Poucos anos depois, o cineasta se desiludiria com a ideologia do regime soviético, cada vez mais rígido e impositivo.
A discussão sobre a qualidade artística do cinema engajado percorre a história da arte. "Artistas como o escritor (russo) Maiakovski (do início do século 20) já diziam que arte engajada tem que ser criativa também, dar conta de seu tempo e abrir novos horizontes", lembra Francisco Cesar Filho, curador da 3ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul, que se realiza na Cinemateca de Curitiba até o dia 15 de outubro.
"Se você faz um filme para exibir somente em uma reunião de ativistas gays, por exemplo, não é prioridade que o filme tenha qualidade artística. Mas se o trabalho, além de servir à discussão, tiver sutilezas narrativas e investigação estética, será mais rico para o público que está vendo, militante ou não", continua.
"Documentarismo com dimensão estética." A frase consta no caderninho de anotações que a cineasta paulistana Carla Gallo carrega consigo aonde for. Ela dirige o documentário O Aborto dos Outros, que participou simultaneamente da mostra realizada na Cinemateca e do 3º Festival Festival do Paraná de Cinema Brasileiro Latino, que termina amanhã, no Museu Oscar Niemeyer.
O filme retrata a história de cinco mulheres a partir do momento em que deram entrada em um hospital público para abortar e de três mulheres que, por meio de depoimentos, falam sobre seus abortos clandestinos. Apesar de tratar corajosamente de um problema social polêmico no país ainda considerado tabu , Carla não se considera uma cineasta engajada. "Me interesso pelos sentimentos humanos. Não sou militante, sou uma documentarista. Fico feliz quando um filme que faço faz as pessoas pensarem. O grande filme é aquele que consegue movimentar o público tanto em relação ao tema quanto às idéias do cinema", explica.
O documentário é um gênero naturalmente associado a temáticas engajadas. Apesar disso, Francisco Cesar Filho conta que um bom número de filmes de ficção increveu-se para esta edição da mostra de cinema e direitos humanos. "Se o realizador tiver um mínimo pé na realidade atual, inevitavelmente tratará de questões relacionadas aos direitos humanos, pois há muito o que fazer nesta área", considera o curador.
Ele lembra que a pauta política é uma característica marcante da produção ficcional brasileira. "Os filmes mais bem-sucedidos têm como matéria-prima as mazelas e as contradições sociais do país e tratam diretamente da violência urbana como Cidade de Deus (de Fernando Meireles), Carandiru (de Hector Babenco) e Tropa de Elite (de José Padilha)", diz.
Essas produções costumam ser criticadas por trabalhar as temáticas escolhidas de forma maneirista o que se convencionou chamar de "estetização da violência". "Hoje em dia, o filme tem que ter um componente estético de impacto se quiser atingir um grande público. Aí, é claro, vira o que se chama de 'cinema-pipoca'. Filmes que não lançam mão dessa estetização estão fadados a não terem grande impacto", justifica Cesar Filho, mencionando o sucesso de Cidade de Deus na Inglaterra, onde figurou nas listas dos dez filmes do ano.
O curador selecionou 50 dentre 182 trabalhos de 11 países latino-americanos e observou que os temas mais visitados são os relacionados à infância e à adolescência em situação de risco social. "Principalmente no Brasil, o que é impressionante, já que a questão é dolorosa e, ao retratá-la, fica escancarada a deficiência da nossa sociedade". O tema, retratado pelo espanhol Luis Buñuel em Os Esquecidos, de 1950, ao narrar a história de um adolescente que foge de um reformatório e volta para as ruas, ganha novas versões no Brasil.
Um exemplo é Juízo (2007), de Maria Augusta Ramos, que será exibido na mostra no dia 15, às 20h30. O documentário acompanha a trajetória de jovens com menos de 18 anos entre o instante da prisão e o do julgamento por roubo, tráfico ou homicídio. Outro cineasta que participa da mostra, o colombiano Ciro Durán, escolheu a infância abandonada como tema de seu documentário, Delinqüente.
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