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 | Ilustração: Robson Vilalba
| Foto: Ilustração: Robson Vilalba

"O álcool tem a idade da terra. Há uma cartografia detalhada da relação do álcool com as antigas ‘civilizações’, e suas reverberações nas práticas, estética e costumes modernos", explica Daniel Lins.

Sem fazer diretamente uma apologia ao uso do álcool, nos ensaios de O Último Copo, o filósofo e sociólogo analisa a arrebatadora presença da bebida no campo acidentado da existência humana.

Ainda que admita o problema social e de saúde pública grave decorrente do abuso do álcool, Lins sustenta a ideia de que a alcoolemia não é apenas de uma doença passiva do corpo e do espírito, mas uma forma ativa de sair de um mundo opaco e servil.

"O álcool é um personagem singular que divide com a humanidade o peso da existência, as dores de um abandono social, as lágrimas perdidas de paixões e loucuras sem correspondência, e a tragédia provocada pelo próprio álcool", observa.

Em abordagem audaciosa e instigante, ele questiona a parte que cabe ao álcool como elemento formador do processo civilizatório. Seja sob o ponto de vista religioso ("há de fato uma teologia do vinho como artefato divino"), seja, sobretudo, pela relação direta e perigosa que os licores produziram no campo da arte do pensamento.

No que toca, em especial, a associação fácil que se faz entre a qualidade de produção literária e filosófica e o consumo "industrial" de álcool, Lins analisa as razões da influência da tessitura social do universo do álcool nesse processo.

"Cada escritor é uma singularidade. No caso americano, em que uma série de escritores alcoólatras habita o panteão da literatura em um período decisivo para a história literária dos EUA, compartilham o gosto pronunciado pelo uísque e pelo gim, em diversos bares, nada garante que álcool seja uma peculiaridade dessa literatura", diz.

Por outro lado, pondera o autor, "o bar, na história literária/intelectual francesa foi sumamente importante, não tanto como espaço de bebedeira ou alcoolismo, todavia como lugar de encontros, invenções e discussões infinitas e produtivas. Encontros amorosos, descoberta de desejos e gozos velados".

Durante os períodos dadaísta e surrealista (décadas de 1910 e 1920), o bar serviu para encontros marcados de grandes personagens das artes, da literatura, do pensamento. Citando o escritor francês Georges Perros, ele afirma que "os bares são o oásis do Ocidente. No bar, a escrita chora pela ponta dos dedos; e cada um refaz o mundo à sua maneira".

Rebeldia

Lins identifica ainda a faceta de uma certa forma de resistência e rebeldia do artista criador em sua associação ao álcool, que pode se transformar em uma forma filosoficamente válida de sacrifício.

"Ele resiste, pois, mesmo quando aparentemente não resiste. Na radicalidade de seu gesto, quem quer ‘outra vida’ para si não é ele, mas, salvo exceção, as carpideiras, militantes de um realismo social, capitães-mores do alcoólatra. O álcool e o sacrifício são necessários: aceitar entrar nessa ‘alguma coisa’ é também consentir em não sair ileso."

Esta vertiginosa relação entre álcool e criatividade é rechaçada pelo jornalista Ruy Castro, um dos intelectuais brasileiros que fala mais abertamente sobre sua condição de dependente químico em recuperação. "É falso. Não existe qualquer relação entre uso de drogas e criatividade", diz.

Castro lamenta que, em muitos casos, alguns artistas sejam mais lembrados por um falso caráter de heroísmo, por um papel de suposta " rebeldia" que assumem em razão de sua dependência, e não por sua obra.

"Esse tipo de pensamento, que foi a base da contracultura, mostrou um resultado catastrófico na vida contemporânea. Essas pessoas que eram geniais usando drogas seriam muito mais se não tivessem usado", afirma Castro.

Entrevista

Daniel Lins, filósofo, sociólogo e psicanalista

Arrebatamento, embriaguez e o "sob controle"

O álcool é aliado da inteligência e da criatividade humana?

Não afirmaria tão radical sentença. Beber é se inscrever em linhas minoritárias, sempre em movimento. Trata-se de singularidades. Em alguns casos, porém, e não são poucos, o álcool é sim amigo da inteligência e da criatividade humana.

Para Marguerite Duras, a obra amadurece no álcool. O álcool substitui o sopro inspiratório dos deuses e das musas. "Quando um escritor entra em pane total de imaginação, há pouca chance de que se volte para Deus, que faça uma prece: ele abre uma garrafa." Arthur Rimbaud se deixa infiltrar pelo álcool. Embora tenha plena consciência de seus malefícios, sabe que o vinho provoca o arrebatamento do qual ele precisa tanto: o êxtase, pois, como o rapto do amor.

Francis Bacon pintava muitas vezes biritado, numa peculiar sinfonia em quatro movimentos: beber, cair, levantar, pintar... Pintar para ele era se embriagar: "Eu sou quase um alcoólatra, meu trabalho é o reflexo de minha vida".

O seu livro faz uma observação ousada da relação entre álcool e cultura à luz da filosofia, deixando de lado os moralismos...

Não curto muito a noção de cultura que é, de fato, um conceito reacionário. A "cultura" é a verdade do espírito conformista, preguiçoso, ufanista, filho da moral e do ressentimento. Ora, a filosofia do álcool, que tenho elaborado, trabalha com a realidade, algo que nada tem a ver com a verdade de cada um, com o dogma de todos.

A verdade não suporta o teste da realidade, do real. A verdade discrimina. Real, realidade estão sempre por ser reinventados. A realidade, ao contrário da verdade, é um pensamento andarilho, cigano, aberto aos encontros, aos saberes e sabores da embriaguez, até da embriaguez abstêmia. Embriagar-se com um copo d’água. Por que não?

O senhor situa o alcoólatra em uma posição de rebeldia que não se contenta nem com o real nem com o imaginário. Estaria no álcool uma libertação para a verdadeira transcendência?

Não. Não creio. O álcool não é um ideal nem uma transcendência. O álcool é pagão, ateu, movediço... Errante. Louco, como todo poeta. Loucura, pois, como uma lucidez líquida... Trágica. Artista de sua própria arte.

A transcendência é ainda uma produção da verdade verdadeira. Daquele que espera para esperar menos... O alcoólatra não espera... Não tem ídolos, salvo a garrafa ou as alegrias instantâneas que, mescladas a euforia, rápida como uma masturbação, encontra em seus caminhos pedras e sangue coagulado.

Como se dá a relação entre álcool e suicídio?

Dissemos que o alcoólatra resiste. Ele é, todavia, um ativista sem militância nem partido. Ele resiste, inclusive, ao se dar à morte. O suicídio é ainda o suicídio do álcool, do porre, da santa birita. Se ele, porém, não se suicida, não é porque teme a morte.

Não haveria, porém, um suicídio sem morte biológica? Um suicídio da calma, encarnado em alguns momentos, potente nas declarações de Jim Morrison, da banda The Doors? "Ficar bêbado... você está totalmente sob controle, até certo ponto. É sua escolha, toda vez que toma uma dose. Você tem muitas pequenas escolhas. É a diferença entre o suicídio e uma entrega aos poucos."

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