Regina Casé mostra, em seus programas "Central da periferia" e "Minha periferia", na TV Globo, que nem só de vala negra e violência vivem as periferias. A atriz se orgulha disso e não cansa de repetir: "Se você quase não recebe visita e alguém vai na sua casa, você vai mostrar a privada entupida ou a infiltração da área? Nunca, né", ironiza a apresentadora, que, no final deste mês, parte para gravar, em cinco países, um programa que será uma mistura de "Central da periferia" e "Minha periferia". As viagens serão para Índia, Angola, Estados Unidos, França e Colômbia e os programas passarão dentro do "Fantástico". A seguir, Regina fala de como se sente diante de realidades tão diferentes:

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Você já ficou mal por causa de alguma coisa que viu durante a gravação dos programas?

— Já fiquei de cama. De chorar uma semana e me acabar. Eu me envolvo demais, mas sabe o que mais me dói, mais do que ver a doença e a pobreza? É ver alguém muito legal ou um lugar muito legal, sem perspectiva nenhuma. Em Sergipe, por exemplo, conheci um menino que, além de lindo, estudava muito, coisas como Piaget e Montessori. Fui na casa dele e vi que lá não tinha nem luz. Achei ele incrível, um garoto muito inteligente. O trabalho da mãe dele era carregar pedra. Eu arrumei uma bolsa para ele, mas ele não tinha perspectiva alguma de viver plenamente a capacidade dele. Isso eu vejo muito. É horrível e é pior quando é generalizada e todos falam: "Para que vou estudar, para que vou trabalhar?". Isso eu acho pior.

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Você acha que os programas provocam algum tipo de transformação nas comunidades que vocês visitam?

— Não dá para eu ter essa presunção. Mas, do fundo do meu coração, eu acho que adianta. E nem é um adiantar muito vago. Primeiro, adianta na transformação daquela pessoa. Entre as pessoas que eu conversei, a maioria achava que não existia. A gente vai a uma favela como a Restinga, em Porto Alegre, ou qualquer uma das outras, com 90 mil pessoas assistindo ao show, aquele acontecimento, naquele lugar onde nunca aconteceu nada — um dia um Papai Noel deu umas bolas baratas daquelas de um real e só... Quando entra um palco, com tudo de melhor com todas aquelas pessoas, acho que a transformação não é a médio nem a longo prazo. Naquela hora, ali dentro, aquilo está sendo transformado. Aquela transformação é imediata. Aquele dia em si vai ficar marcado na vida daquela comunidade e daquelas pessoas de uma maneira muito positiva, confere uma existência.

Você trabalha muito com o Hermano Vianna que é antropólogo e visita mil lugares nas profundezas do Brasil. Você se vê como uma antropóloga na TV?

— Vejo. Tinha pudor de dizer que me via como antropóloga, botânica, professora, jornalista. Depois falei: "Gente não quero roubar isso de ninguém, mas tem tanta pessoa modelo que vira atriz, BBB que vira ator, escritor vira jornalista...

Você acha isso ruim?

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— Se a pessoa se garantir e se der bem, acho que está ótimo.

Conhecer diferentes realidades do nosso país transformou você? A sua vida?

— Mudou totalmente. Era chamada para fazer uma novela, em geral um papel engraçado, e pensava: "Quantas atrizes boas vão poder fazer esse papel? Agora quem vai subir o morro, quem vai fazer ‘Central da periferia’ e a ‘Minha periferia’?. Não é que tenha mais coragem que ninguém, mas é porque ninguém está voltado para isso e não há ninguém que tenha conseguido quebrar essa barreira, atravessar essa fronteira. Tem alguns documentaristas, mas eles têm um compromisso com a denúncia. A vida foi me colocando nesse lugar e foi meio como se eu não conseguisse voltar. Não só porque eu gosto. E não faço isso pelos outros, faço por mim. É o ambiente mais vivo. Fiquei com um problema ao contrário porque ia numa festa de classe média ou de rico e achava chato. Foi a mesma coisa com viagem, depois do "Brasil legal". A gente viajava e de manhã ia dançar, dar umbigada, tinha tambor, à noite ia para não sei mais onde...Chegava aqui e parecia que a vida era em slow-motion.

Agora, você não consegue mais tirar férias normais?

— Nunca tive férias normais, minhas férias são na Índia, alugando ônibus com 15 pessoas. Todo mundo diz que descanso carregando pedra. Vou para Angra e descubro um reizado, entro num quilombo. Meu marido diz que eu descanso carregando pedra. Mas gosto de ficar boiando dentro d'água.

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Você se envolve com as pessoas que conhece no programa? Fica com vontade de ajudá-las?

— No começo queria levar todo mundo pra casa, tipo emergência do Hospital Miguel Couto. Mas você vai se acostumando. Fui na periferia mais pobre de Maputo (África) e estava acabando a luz, era o último dia de gravação e faltava aquele lugar. Quando cheguei lá, vi esse rapaz e falei: "Sou brasileira e tenho um programa de televisão, mostro que a periferia não tem só bandido, tem um monte de coisas legais. Me mostra o que tem de bom aqui?" Acabei, de noite, na casa dele, com o pai e o irmão dele. No caminho para lá, uns meninos estavam jogando futebol com uma bola de lixo, amarrada com barbante. Conversei com eles, que não tinham a menor idéia de quem era Regina Casé. Isso é uma das coisas que me deixam mais feliz. Tudo que eu consigo aqui dizem: "Mas todo mundo te conhece...". Lá ninguém me conhecia. Essa capacidade de se comunicar com o outro, de inspirar respeito e confiança no outro para ele te dar respeito e confiança, te dar amor, eu sei que eu tenho. Sei que sei fazer. Bom, mas os meninos me deram a bola de presente. Na hora de ir embora, fui na embaixada e providenciei para mandarem um monte de bolas pra eles. Este ano, uma outra equipe foi lá filmar e chegaram com um DVD mostrando o menino com a bola que mandei. Tem isso. Tenho uns presentes e umas recompensas incríveis.