"Como com esses caras todo dia. Conheço os hábitos alimentares deles tanto quanto as músicas que tocamos à noite. Paul sempre cobre seu prato com um guardanapo quando está satisfeito. É como se colocasse um lençol sobre um cadáver semidevorado. Nick nunca nota os garçons. Eles o rodeiam até que alguém da banda o cutuque. Sempre que Bob bebe alguma coisa, empurra o lábio superior para trás com a borda do copo. Andy costuma olhar absorto para seu prato, verde de ansiedade, preocupado em saber de que forma a comida estrangeira irá envenená-lo."
Trecho de Mordidas Sonoras, de Alex Kapranos, traduzido por José Júlio do Espírito Santo.
É quase certo que, antes ou depois do show que os escoceses do Franz Ferdinand fizeram no Rio de Janeiro no último dia 19, uma parada certa tenha sido na churrascaria Porcão, no Aterro do Flamengo. Pois não há como ignorar as lembranças que o vocalista Alex Kapranos tem do local. "A lâmina da faca atravessa o que parecem ser cinquenta castanhas de caju rechonchudas. São corações de frango. São firmes, muito gostosos e mais carnudos do que as outras partes", escreveu Kapranos em Mordidas Sonoras Uma Turnê Gastronômica com Franz Ferdinand, lançado no Brasil pela Conrad.
O livro foi deglutido durante uma turnê mundial de dois anos (2005 e 2006) a pedido de Helen Pidd, editora do jornal britânico The Guardian no qual Kapranos tinha uma coluna. A obra leve, em tom quase despretensioso, serve como guia gastronômico, relato de viagem e, claro, espaço para divagações musicais. O autor tem larga experiência na cozinha mais do que nos palcos, inclusive. O descendente de gregos, antes de fundar a banda, em 2000, trabalhou em diversos tipos de restaurantes na Grã-Bretanha. Começou como entregador de fast-food indiano e chegou a ser chef de cozinha em um badalado restaurante.
O passeio gastronômico vai de Nova York a Osaka, de Paris a Zagreb, de Londres a Cingapura e de Milão ao Rio de Janeiro. Turista curioso, Kapranos se perde em meio aos pratos típicos de cada região gafanhotos na China, ouriços do mar no Japão, testículos de touro em Buenos Aires, que lembram o gosto de "um saco de moedas enferrujadas".
Tendo como prerrogativa a frase "comida é aventura", Kapranos nos conduz a um mundo de sabores em que seus parceiros de banda também têm vez. Impagável, por exemplo, é a história do baterista Paul com as ostras de Seattle. Lê-se: "Um catarro cinzento é cuspido para fora. Ele olha fixamente para a gosma. Com um olhar desafiador, coloca-a na boca novamente. Mas torna a expeli-la no ato. Paul nunca provou ostras".
Situações inusitadas como essa, vez ou outra dão lugar a uma abordagem histórica, como a que acontece quando Kapranos fala sobre os schweinmetzgers os salsicheiros alemães que se fixaram no nordeste da Grã-Bretanha. Ou ainda quando relata os antigos costumes australianos de tomar chá nas árvores durante os anos 1930, "em plataformas construídas entre os galhos de um carvalho".
A música está presente nas descrições dos restaurantes, quase sempre com trilha sonora ambiente. É o que acontece no Country Station Sushi Café, em São Francisco, nos Estados Unidos. Lá, "os alto-falantes vibram com a psicodelia brasileira dos Mutantes", enquanto a banda degusta "caranguejos crocantes de casca macia, fritos e servidos em metades, como uma porção de tarântulas emergindo de uma caçarola de porcelana".
Mas os anos nos bastidores da cozinha serviram indubitavelmente para sedimentar o conhecimento de Kapranos em relação a essa outra arte. Veja, por exemplo, a descrição do daikon, o rabanete que acompanhou o sushi pedido em um restaurante de Osaka. "As raspas vêm da extremidade da raiz, que desponta na superfície, por isso são tenras e frescas". Como músico, Kapranos daria também um bom chef. GGG
Serviço
Mordidas Sonoras. Alex Kapranos. Conrad. Diário de viagem. 142 págs. R$ 34,90.
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