Livro
Carbono Pautado Memórias de um Auxiliar de Escritório
Rodrigo de Souza Leão. Record, 272 págs., R$ 42,90.
O século 21 é regido pela ideia da segurança. Senhas, registros civis, impressões digitais, cartões de ponto e crachás de identificação emprestam ao cotidiano, muitas vezes, a aparência de uma prisão. Mas a ideia da segurança inclui o medo, e o medo, quase sempre, leva à cópia e à repetição. Territórios em que as chances de errar (e de tropeçar no inseguro), na aparência, diminuem. Território, portanto, avesso à criação.
Disposto não só a enfrentar, mas a transformar esse território, Rodrigo de Souza Leão nos aparece, três anos depois de sua morte em 2 de julho de 2009, aos 43 anos de idade com o romance Carbono Pautado Memórias de um Auxiliar de Escritório (Record). Como uma mensagem visionária enviada desde o passado, seu livro desafia alguns dos mais rígidos preceitos do século 21. É como se ele gritasse: "chega de segurança!" O escritor percebia muito bem que o excesso de segurança, em vez de proteger, mata. Mata o que? A liberdade de ser, que inclui o direito de tropeçar, de se equivocar e, assim, se modificar.
Como o subtítulo do livro já anuncia, Carbono Pautado traz as memórias de um jovem auxiliar de escritório que, com a ajuda do avô, consegue uma vaga de trabalho na seguradora de um grande banco. A seguradora se torna, para Rodrigo, uma metáfora de seu mundo de homem deslocado a quem se destinou, talvez por isso, o crachá médico de "esquizofrênico". É desde a fenda aberta entre o normal e o anormal, entre o seguro e o inseguro, que seu jovem personagem narra sua miserável odisseia. Como um discípulo de Kafka embora os dois se distanciem em matéria de escrita e estilo , também Rodrigo leva ao limite as possibilidades do mundo burocrático, em que os homens se tornam prisioneiros dos detalhes e das coisas.
Quando a secretária do departamento pessoal lhe entrega seu novo crachá, ela lhe faz um cafuné (para amansar a fera que sob ele ruge). Apontando para a identificação, lhe diz: "É toda sua. Só pode perder uma vez. A segunda paga". Sobre a ameaça financeira, porém, se ergue outra ainda mais atroz: a de que, se perder o crachá de vista, o personagem perderá a si mesmo. Como novo funcionário da Divisão de Organização e Método, ele está ali não para inventar, mas para ordenar; não para criar, mas para seguir um protocolo anterior a seu desejo. Não para ser, mas para servir.
Ainda assim, o rapaz teima em conservar alguns sonhos. Teima, contra todas as forças da realidade, em resistir. Insiste como seu criador, Rodrigo, sempre fez em desprezar as muletas que lhe oferecem para, desprezando-as, se colocar na posição de desequilíbrio. Mas quem pode fazer ficção sem se oferecer ao risco? Como comenta o apresentador Franklin Alves Dassie, muitos atribuem a prosa fragmentada de Rodrigo a sua classificação de "esquizofrênico". Não será, porém, o contrário? Não foi porque Rodrigo se deu absoluta liberdade para criar (não só na literatura, mas também na música e na pintura) que a denominação (crachá) pareceu, para muitos, necessária e natural?
Não há dúvida de que, embora não tenha escrito uma ficção autobiográfica, Rodrigo de Souza Leão se duplica (como nos papéis carbonos) no personagem que inventou. Também o escritor sentia o mundo, ao que parece, como uma espécie camuflada de "escritório-quartel", no qual só lhe restavam algumas brechas e vãos. Mundo da marcha em linha reta, absolutamente avesso ao desvio, ele se personifica em um personagem como Fichelm que, de tanto repetir sempre as mesmas coisas, "parecia ter engolido um rádio de pilha". Universo dominado pelo falso, observado desde fora, porém, ele guarda a aparência do uniforme e do ordenado. Mundo que só o sonho, com suas incoerências e deslizes, pode desestabilizar.
Leitor de Nietzsche e adepto de suas suspeitas a respeito da estabilidade do real, o personagem de Rodrigo sente-se cercado de idiotas. Mas é também como um idiota, que não aceita o aconchego oferecido pelo mundo burocrático, que ele mesmo é visto. Entre tabelas, valores e planilhas (gaiolas com que tentamos aprisionar a tempestade da vida), ele aprende a se deliciar prazer perverso, mas vital com a bizarrice das coisas. Coisas de um mundo, ele também, de aparência duplicada, no qual os elogios escondem os deboches, a perfeição dissimula o tédio e a grandiloquência disfarça, muito mal, o vazio. "Somos o escol de uma nova civilização", vibra Xarluz, outro personagem que não consegue ficar calado. "Tinha que falar, mesmo que fosse a coisa mais desconexa do mundo". Imitando os disfarces usados nos fronts de guerra, também nas redes da burocracia as palavras, em vez de expressar, servem para camuflar.
Asfixiado por sua coleira corporativa, o personagem de Rodrigo se identifica, para seu próprio pavor, com certo Magadura Cabral, um auxiliar de escritório que, no passado e por estresse, "endoidou de vez". Por isso, nunca deixa de buscar, ainda que as condições não lhe pareçam favoráveis. Se às vezes luta para se adaptar, é igualmente para sobreviver. Na verdade, procura só uma máscara que o proteja do olhar alheio. É por isso que, muitas vezes, se salva não pelas palavras, mas pelo silêncio. "Nunca imaginei que trabalhar fosse conviver com figuras tão insólitas", constata. Sem compartilhar da gozação e do sadismo que pautam a vida no banco, ele percebe, porém, que, para sobreviver, precisa olhar a miséria com certa alegria. Talvez, até, com carinho isso apesar do bombardeio contínuo dos clichês e dos preconceitos.
Na festa de fim de ano do trabalho, ele percebe, enfim, que a repetição atordoante contamina não só as mentes, mas os sentidos. A sensação de deslocamento se torna então mais forte: "Não conseguia compartilhar daquela comilança. Sequer toquei no refrigerante que o garçom trouxe para mim". Acaba sendo tomado por um espião, isto é, o representante de um mundo desconhecido e ameaçador. Função que desempenha o próprio romance de Rodrigo, tenso e irregular, nervoso e gago, mas que, com sua estranha vibração, nos alerta a respeito dos perigos do bem escrever.
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