Como se não soubéssemos, errar é humano. E perdoar é divino. A pergunta é: se estivesse vivo, o polêmico poeta paranaense Paulo Leminski precisaria ou gostaria do perdão? Para começar, se ele estivesse vivo, a imagem do original datilografado (abaixo), provavelmente, nem chegaria a você leitor que pode estar descanÇando em sua poltrona, enquanto lê a reportagem. Esse e outros 30 mil documentos, entre originais alguns inéditos matérias, entrevistas, cartas, documentos pessoais, crônicas para jornais, vídeos, fotografias, peças publicitárias passam a ser disponibilizados em DVD nas escolas públicas, universidades e bibliotecas de todo o Brasil, a partir de agosto, após 24 anos da morte do escritor curitibano.
O poema em que em uma nota rabiscada o poeta afronta, ao que parece inconscientemente, a língua portuguesa foi escrito em 1987, dois anos antes de sua morte. Em outro poema, sem data, os erros são em maior número (hontem, oje), mas, comparando-se as duas, a afronta ali não parece ser menor porque provocada, proposital? Erro à parte o que chama a atenção nesse descanÇo leminskiano riscado no título é a demonstração de um "cansaço" dos dogmas concretistas.
Nos versos publicados (sem rabiscos) no livro póstumo La Vie en Close, em 1991, que o escritor deixou organizado, ele deixa patente o afastamento desse ideário. "Mostra uma mudança, faz um balanço na trajetória da poesia dele que, no início da carreira nos anos 1960, era uma poesia visual, concreta. Como ele mesmo diz no verso, escrevia no espaço. Já nesse poema, Leminski se preocupa com a dinâmica da voz, com o poema lido em voz alta. Interessante que mesmo o título antigo riscado tem melodia musical, manteve o mesmo ritmo", observa o escritor e professor de literatura Marcelo Sandman, responsável pela organização do livro A Pau a Pedra a Fogo a Pique Dez Estudos sobre a Obra de Paulo Leminski.
Mosteiro
Quem sabe o tema perdão caberia melhor lá em 1958, ano em que passou no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, contrariando a vontade da família ao se decidir pelo seminário. As cartas que escreveu durante e algum tempo depois da permanência na instituição estão no DVD que será disponibilizado para bibliotecas e centros culturais. A biografia O Bandido Que Sabia Latim, escrita pelo amigo jornalista e roteirista de televisão curitibano Toninho Vaz traz alguns parágrafos, mas não reproduz nenhum desses manuscritos na íntegra. As linhas escritas à mão por um aparentemente bem-comportado Leminski não conduzem o leitor a imaginar o mesmo garoto que era visto pelos companheiros como anarquista e no alojamento do mosteiro guardava fotos de vedetes em trajes sumários embaixo do colchão. Quando deixou a instituição, continuou mantendo contato com o dirigente Dom Clemente. Nas correspondências pede sugestões de leitura, comenta sobre os estudos de línguas iniciados no mosteiro e reclama do progresso no grego. No latim, em compensação, aconteceu o contrário: conseguiu até escrever uma carta para Dom Clemente. Em outro documento, comunica que já fez, inclusive, algumas traduções do latim para o português. Isso aos 15 anos. Aos 33 anos, já mais distante da doutrina católica e próximo do zen-budismo, escreveu um poema que não foi incluído em Toda Poesia, última publicação póstuma, lançada em 2013, que reúne a obra poética de Leminski e é sucesso de vendas. O poema datilografado, sem título, está no DVD. O "Louco dos Pinheirais", que encarnou a figura do poeta maldito, faz alusão a um pinheiro que "ganhou" flores amarelas.
Efêmero
Os poemas curtos, sintéticos vêm da aproximação com a poesia e cultura japonesas, às quais estudou em profundidade. Vem daí também a constante observação do efêmero na obra do poeta em que a palavra efêmero, aliás, parece ter acompanhado o cotidiano de uma vida que terminou aos 44 anos, em 1989, em consequência do agravamento de uma cirrose hepática. Meses antes de morrer, depois de voltar de São Paulo, cidade onde morou por um curto período, declararia em entrevista à imprensa curitibana: "voltei porque pinheiro não se transplanta. Eu sou pinheiro...". Pinheiro é a denominação popular da árvore símbolo do Paraná Araucaria angustifolia, em perigo de extinção.
A comparação do poeta com a árvore é o pretexto para outras mais. Como a araucária não tem a ecologia e a biologia completamente conhecidas pela ciência, continua sendo objeto de diversos estudos. O lançamento do DVD, por sua vez, abre espaço para a crítica genética. Leminski pode ter várias facetas do seu DNA literário desvendado graças a esse material. "A disponibilização do acervo de Leminski dá aos leitores e pesquisadores a oportunidade de consultar material muito raro, que pode ajudar a esclarecer aspectos da sua trajetória literária, bem como dos seus processos de criação", resume Sandman.
Navegar no DVD é um mergulho num universo imenso de possibilidades e especulações sobre a vida e a obra do escritor. Ele não descanÇa em paz. E haveria de querer?