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James Shapiro tem se firmado como um dos mais peculiares comentadores de Shakespeare da atualidade – misto de acadêmico, conhecedor de literatura comparada e da história da literatura em língua inglesa, com "detetive literário", que junta pistas e reconstrói com rigor a cena em que atuou o bardo inglês. Ganhou notoriedade a partir de 1599 – Um Ano na Vida de Shakespeare (Planeta), livro que analisa como esse ano, em particular, forjou o bardo, até então um entre outros autores teatrais populares na Inglaterra elisabetana; e anuncia, na entrevista a seguir, que talvez venha por aí uma sequência na mesma linha, agora tratando de 1606, ano de nascimento de nada menos que Rei Lear e Macbeth. Shapiro também esclarece suas divergências com Stephen Greenblatt, com quem debaterá na Flip, e faz uma comparação inusitada (especialmente para um americano): talvez fique mais fácil entender como surgiu Shakespeare quando se pensa em... Pelé.

Como algumas das mentes mais brilhantes, e de épocas diferentes, puderam acreditar em uma teoria tão pouco plausível?

Pessoas inteligentes, especialmente as mais originais, muitas vezes defendem coisas estúpidas. Mas só lembramos de suas ideias inteligentes. Sigmund Freud achava que Moisés era egípcio; e também que Edward de Vere era o verdadeiro autor das peças de Shakespeare. Mark Twain foi um grande escritor americano; mas ele, como Freud, Henry James e outras mentes brilhantes, não conseguiu resistir à tentação de ler Shakespeare de forma anacrônica, de acordo com sua própria experiência de produção literária. Pessoalmente, simpatizo muito com essas figuras que se deixaram desencaminhar e convencer de alguma coisa que não era verdade: que o filho de um luveiro de uma cidade rural da Inglaterra não poderia ter escrito de forma tão magnífica. Mas, como já está provado, ele escreveu.

Sua abordagem de Shakespeare guarda diferenças importantes em relação à forma como outros estudiosos analisam a vida e a obra do escritor. No livro, há uma crítica em particular à visão de Stephen Greenblatt sobre o assunto. No que, principalmente, discorda dele?

Stephen Greenblatt é, sem dúvida, o maior estudioso de Shakespeare em atividade e o mais importante especialista em Renascimento dos últimos cinquenta anos. O que critico é sua tendência – também presente em muitas das obras dos maiores biógrafos de Shakespeare – de interpretar a vida do autor por meio da obra. De alegar, por exemplo, que Shakespeare estava reagindo à perda de seu filho Hamnet ao escrever Hamlet, ou que seus Sonetos eram autobiográficos e que seria possível descobrir, a partir deles, o que o escritor sentia pela esposa. Para mim, o problema dessa abordagem não é apenas o fato de que não podemos saber realmente quais eram os sentimentos de Shakespeare em relação à esposa e ao filho (acabamos por projetar nossas próprias fantasias na imagem que fazemos de Shakespeare), mas também porque esse tipo de interpretação é muito utilizado justamente pelos que não acreditam que Shakespeare escreveu Shakespeare. Por esse raciocínio, se Oxford foi capturado por piratas (como Hamlet) e teve três filhas (como Lear), e Shakespeare nunca foi capturado em alto-mar e tinha apenas duas filhas, então quem escreveu as peças? Dada a influência extraordinária e merecida de Greenblatt, achei importante chamar atenção para a abordagem dele também, sem desmerecer o quanto é brilhante e persuasivo.

No Brasil, o livro de Greenblatt, Will in the World, recebeu como título Como Shakespeare Se Tornou Shakespeare (no original, o subtítulo do livro). Transformemos a afirmativa em pergunta: como Shakespeare se tornou Shakespeare?

Passei os últimos trinta anos de minha vida lutando com essa questão – e a resposta é: não sabemos e não há como saber. Em parte porque os anos de formação – a década entre o casamento do escritor, o nascimento de seus três filhos em Stratford e seus primeiros anos como ator e dramaturgo, no início de 1590 – estão completamente perdidos. Isso faz com que os estudiosos inventem vários tipos de inclinações religiosas, sexuais e familiares para o escritor, sem nenhuma base documental. Simplesmente não sabemos o que o levou a atuar e escrever, deixando a família para trás. Não sabemos o que o inspirou. Como as repostas para essas perguntas estão perdidas, possivelmente para sempre, concentro meu trabalho no que é possível revelar com alguma certeza: como Shakespeare passou de um estágio de sua carreira a outro? Que forças culturais e profissionais influenciaram na escrita de Henrique V e Hamlet em 1599? Esse assunto me tomou quinze anos [e resultou no livro 1599 – Um Ano na Vida de William Shakespeare], e estou a meio caminho de retraçar o que levou Shakespeare a escrever Rei Lear e Macbeth, ambas, em 1606. A questão pode parecer menos ambiciosa, mas me sinto mais confortável com essa abordagem.

Ao pesquisar para o livro, o senhor alguma vez se sentiu inclinado a acreditar em alguma das hipóteses contestatórias?

Já me fizeram essa pergunta muitas vezes e a resposta é "não" – talvez porque eu não seja uma pessoa dada a teorias conspiratórias. Estamos cercados delas hoje em dia (o homem nunca chegou à Lua, a CIA ou o Mossad estão por trás do 11 de Setembro, Osama ainda está vivo, e assim por diante...). Nunca acreditei em nenhuma das teorias alternativas porque conhecia bastante sobre como peças eram escritas e encenadas na época de Shakespeare. E também sabia que seu perfil se encaixa no de um dramaturgo elisabetano: homem jovem de classe média que se muda para Londres determinado a ganhar a vida com sua pena. Aristocratas não escreviam para encenações em teatros públicos. Isso era trabalho duro, fatigante e, em grande parte, colaborativo também.

Ainda assim, há alguma hipótese de autoria alternativa que lhe parece sedutora?

Ninguém nunca sugeriu essa – que eu saiba – mas Shakespeare tinha um irmão mais jovem, chamado Edmund Shakespeare, que morreu em Londres em 1607 e de quem se sabe muito pouco. Ele poderia ser o verdadeiro autor das peças. Acho que isso daria uma ótima história e um cenário mais plausível que a maioria dos apresentados pelos candidatos rivais: Shakespeare teria roubado o talento de seu irmão mais jovem, assassinando-o em 1607 por inveja e para manter sua reputação intacta e, com a consciência pesada, bancando o funeral de Edmund, que está enterrado na catedral Southwark.

Uma das alegações dos que defendem a hipótese de Francis Bacon é a suposta impossibilidade de que dois gênios de tamanha estatura, Shakespeare e o próprio Bacon, pudessem ter surgido numa mesma época e num mesmo lugar. O que havia de tão estimulante para as artes e para a filosofia na Inglaterra elisabetana?

Essa é uma excelente questão – e um grande mistério. Fico me perguntando se a mesma coisa pode ser pensada em relação a outras áreas (um período e uma nação que tenham produzido grandes compositores, ou físicos, ou jogadores de futebol. Tenho certeza que os historiadores do futuro vão se perguntar: "Pelé era único, ou simplesmente o melhor de um time excepcionalmente talentoso que jogava para ele, o Santos?"). O que sei é que o número de mentes brilhantes e escritores excepcionais da era elisabetana vai muito além de Bacon e Shakespeare, e inclui os poetas John Donne e George Herbert, os dramaturgos Christopher Marlowe e John Webster, o religioso Lancelot Andrewes e muitos outros. A melhor explicação que posso oferecer é que era uma época de pressão religiosa, política e social, com uma cultura de se voltar aos escritores para explicar e interpretar aqueles tempos turbulentos.

Qual foi sua primeira reação ao descobrir que um documento tão seminal para os divulgadores da controvérsia da autoria, o "Manuscrito de Cowell", era uma falsificação?

Deixei para pesquisar o "Manuscrito de Cowell", disponível na Universidade de Londres, nos últimos anos de minha pesquisa. E, quando o fiz, estava temeroso, porque esse documento poderia contradizer tudo o que eu havia descoberto a respeito das origens da controvérsia. As provas que eu tinha conseguido reunir até então localizavam o surgimento da questão entre as décadas de 1840 e 1850; pelo "Manuscrito de Cowell", poderia recuar a 1785. Nesse ponto, ainda não sabia que o documento era uma falsificação... Algumas pessoas já haviam levantado essa hipótese, mas sem conseguir provar nada – e, de qualquer forma, praticamente todos os documentos relativos à questão da autoria já foram questionados. Quando pedi para consultar o manuscrito, não fazia ideia do que me aguardava. Descobrir que se tratava de uma falsificação foi um prazer e um grande alívio – não se tem muitas experiências assim no decurso de uma carreira acadêmica.

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