Em um ano no qual se comemoram tantos centenários, bicentenários (Hans Christian Andersen) e quadricentenários (Dom Quixote de La Mancha) de obras e autores, nada melhor do que lembrar os 100 anos de Elias Canetti (1905 – 1994). Talvez seja coerente começar por demarcá-lo. Doutor em Química, o autor preferiu dedicar-se às letras, sendo autor de romances, ensaios, peças e diários. Nascido na Bulgária, Canetti naturalizou-se inglês, apesar de escrever em língua alemã.

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Essa definição enciclopédica não é gratuita. Serve para ilustrar como esses fatores convergiram para que Canetti realizasse – ao menos em parte – um antigo sonho de infância: "saber tudo". Mas, mais do que isso, ele conseguiu se tornar um pouco de tudo. Não é por acaso que, em 1981, ele ganhou o Prêmio Nobel, "por seus escritos marcados por um vasto olhar, rico em idéias e em vigor artístico". Paulo Soethe, professor de Literatura Alemã da Universidade Federal do Paraná (UFPR), considera que "no fundo, é uma dádiva aos países de língua alemã que Canetti tenha escolhido esse idioma para escrever a sua obra".

À infância marcada pelas tiranias dos familiares, seguiram-se as repressões nazistas (Canetti era de ascendência judia). Com isso, não é difícil entender o interesse do autor por fenômenos de multidões e seus líderes. Essa fixação tomou forma definitiva na obra-prima Massa e Poder. Nesse vasto ensaio, Canetti tece analogias que unem revoluções, movimentos sociais e a morte sob uma mesma óptica, por meio de vários exemplos históricos e literários. Lançado em 1960, o livro demorou mais de 30 anos para ser concluído, mas, já em suas pesquisas iniciais, Canetti refuta as teorias de Marx e Freud, sendo que, no resultado final, apenas o último é citado – uma única vez.

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No entender de Roberto Romano, professor de Filosofia Política da Unicamp e autor do prefácio de O Teatro Terrível, a importância de Massa e Poder se encontra justamente no fato de dispensar antigos dogmas da Sociologia: "Até o fim do século 19, toda a filosofia política se baseava na idéia de ‘natureza-máquina’ newtoniana, tendo a sociedade e o Estado como peças de um mesmo mecanismo. Com a Física de Einstein, esse axioma caiu por terra. É justamente Cannetti quem vai trazer essa nova visão de universo para a Sociologia, revelando as complexidades desse campo". Porém, para chegar a essas conclusões, o autor partiu de um longo estudo sobre a natureza humana, que – notoriamente – ganhou corpo em suas obras ficcionais.

Sua obra de estréia, publicada em 1930, foi Die Blendung, que significa algo como "A Ofuscação". Porém, ficou conhecido no Brasil com Auto-de-Fé. O romance conta a história de Peter Kien, um especialista em culturas orientais, fanático por livros e avesso às pessoas. Apesar disso, Kien apaixona-se por sua governanta, Therese Krumbholz, ao ver o modo cuidadoso como ela limpa as estantes de sua enorme biblioteca. Ao se casarem, porém, ela revela seu caráter avarento e ignorante. Acaba levando Kien à ruína total. O fim culmina com a auto-imolação do personagem junto aos seus amados livros.

O enredo, que pode parecer ingênuo, é um meio para revelar as conseqüências de um fanatismo absurdo. Segundo Soethe, "Canetti atenta como poucos à persistência da insanidade no tecido ‘racionalizado’ da sociedade complexa e, como Kafka, antecipa os perigos da irrupção da irracionalidade sob formas destrutivas, como nos regimes fascistas".

Originalmente, Auto-de-Fé havia sido planejado como o primeiro de uma série intitulada a Comédia Humana dos Loucos. Inspirado em Balzac (de A Comédia Humana), Canetti imaginou um panteão de oito personagens, cada qual representante máximo da profissão que exercia, para que, dessa forma, o autor pudesse expandir e investigar certas particularidades do gênio humano. Como escreveu em suas memórias, cada uma delas "devia expressar tão bem determinado aspecto do mundo que este seria mais pobre sem ele; mais pobre, mas também mais falso".

Dessa forma, foram concebidos os personagens Homem da Verdade, o Fantasista, o Fanático Religioso, o Colecionador, o Perdulário, o Inimigo da Morte, o Ator e o Homem dos Livros. Por esses nomes, é possível notar o quanto Canetti havia sido influenciado pela mitologia grega, na qual cada divindade assume um aspecto da natureza e do espírito. Porém, de todos, somente o Homem dos Livros sobreviveu.

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Segundo Canetti, as energias desprendidas para escrever Auto-de-Fé foram tantas, que ele jamais conseguiria fazer novamente um livro de gênero semelhante. E assim foi: esse seria o único romance de Canetti.

Teatro

Para continuar os seus estudos, o autor adotou uma nova forma de expressão: o teatro. Entre a veia política de Brecht (ou de Aristófanes, como gostaria o escritor) e os aspectos subterrâneos de Dostoievski, Canetti estruturou um cenário de cacofonia, resultado de conflitos burgueses. Em A Comédia das Vaidades, uma lei define a abolição de todas as imagens e retratos. A medida – que inicialmente é aclamada – acaba resultando em esquizofrenia geral. Cria-se, então, uma "ditadura do ego" que, como observa Roberto Romano, começa na peça com um "nós" repetido hipnoticamente, e termina com um "eu", berrado no meio de uma multidão anônima. "O grande personagem do teatro canettiano é a Iminência Imediata da Morte, encarnada num despotismo que, ao tentar sobreviver, arrasta todos para a autodestruição, através da guerra e do caos social".

Essa peça – assim como as outras duas que escreveu – é de dificílima montagem. Em O Casamento, por exemplo, cerca de 25 personagens atuam num mesmo ambiente, durante quase toda a encenação. Para resolver o problema da identificação dos personagens pelo público, Canetti não recorreu a diferenciações visuais, mas sim verbais. Criou as "Máscaras Acústicas", técnica que delimita um jeito específico de falar para cada personagem, por meio de um vocabulário individual.

A obra canettiana publicada não vai muito além das citadas. Porém, isso não significa que ele não tenha sido um escritor prolixo. Seu espólio total é de 20 mil páginas, das quais apenas um décimo encontra-se em livrarias. Segundo o seu desejo, esses inéditos serão lançados até o ano de 2024.

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Contudo, como comenta Romano, "essa obra profunda e radical ainda precisa ser refletida e criticada. Não é fácil brincar com um pensamento desses, mas já é possível entrever alguns esforços para compreendê-lo". Os eventos do centenário parecem reforçar essa idéia. Soethe – que recentemente visitou a Europa – descreve que "são vários os países que se identificam com Canetti: Alemanha, Bulgária, Áustria, Inglaterra e Israel sentem-se igualmente orgulhosos pelo reconhecimento que o escritor recebeu da comunidade internacional". Em um ano no qual tanto se lamentou sobre os desencantos políticos, como a crise da esquerda brasileira, é sintomático o retorno aos escritos de Canetti já que, na concepção do próprio autor, esses são frutos de sua luta contra o maior inimigo do homem: a morte.