Em vermelho, a cidade de Tupãssi que tem menos de 10 mil habitantes| Foto: Reprodução Ipardes

"Para andar, basta colocar um pé depois do outro", diz Celina para si mesma, na primeira página de Rakushisha, o novo romance da escritora carioca Adriana Lisboa. Mas será simples assim? Andar não exige uma capacidade física subordinada à vontade? Não exige mais, uma capacidade emocional de romper a inércia, a acomodação, o medo, e sair do lugar?

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"Dá para ter em mente pequenas metas: primeiro só a esquina", acrescenta a personagem. Talvez não seja mesmo tão fácil, para que seja preciso começar aos poucos, evitar o susto, vencer os esforços iniciais. Celina se apresenta às voltas com essas inquietações. Ela, a mulher etérea que carrega coisas invisíveis consigo. De silêncios prolongados, cujo vazio aumenta quando se põe a repetir as mesmas frases. "É só colocar um pé depois do outro".

Logo Celina confessa que está reaprendendo a andar. Por isso, a obsessão pelos passos. Mas, o que significa sua reabilitação, se equivale a lembrar ou a esquecer, são informações dissolvidas no pouco que essa mulher de 30 e tantos anos está disposta a revelar. Celina se deixa levar por divagações, certa de que o único bem humano "é a capacidade de locomoção". É como justifica sua repentina viagem a Kioto, no Japão, ao lado de Haruki.

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Haruki é uma figura apenas delineada. Um homem de traços nipônicos que não fala japonês, mas se ocupa das ilustrações para um livro do poeta Matsuo Basho, mestre dos haikais. Um homem que, como Celina, silencia dores profundas. É quem ela aborda na saída do metrô, intrigada pelos símbolos orientais do livro que ele parece ler. Vão juntos a um café, vão juntos ao outro lado do mundo, mas raramente se falam. Duas solidões intransponíveis.

Suas histórias são entrecortadas por trechos do Diário de Saga de Basho. O poeta o escreveu em Rakushisha, a Cabana dos Caquis Caídos, localizada em um subúrbio de Kyoto (cidade onde a autora viveu por um mês). Diz a lenda que na cabana cresciam 40 pés de caquis, todos carregados de frutos prontos para serem vendidos, quando um temporal arrasou a plantação. Os caquis caídos, símbolos da perda, batizaram o local.

Em seu sexto romance, Adriana Lisboa, autora do elogiado Sinfonia em Branco (Prêmio José Saramago, em 2003), trança uma narrativa de avanços e recuos, momentos de brevidade e confusão, numa sucessão de vazios e tragédias caladas, ausentes. Adriana escreve sobre perdas irremediáveis, paralisantes, sobre uma personagem que as sofreu e ainda está em luta para romper a imobilidade, para atravessar o silêncio e permitir as lágrimas.

A consciência de Celina duela entre as suposições de possíveis próximos passos e as memórias insistentes do passado, do prazer com Marco e de Alice, a menina que gostava de andar de bicicleta. Ao mesmo tempo, Haruko experimenta um contato inédito com suas raízes, o país de seus antepassados, e a lembrança de uma nissei que provocara aquela viagem, mas não partira com ele.

Os dois estão desorientados no vácuo das perdas ainda presentes. Enfrentam um período pós-traumático, mais lacerante para ela. Na agonia silenciosa da qual Celina tenta se desvencilhar, "sua voz parecia um casulo de borboleta dentro da garganta, operando alguma espécie de transformação interna". A narrativa a acompanha nessas tentativas de transformação.

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A escrita de Adriana é delicada, sem pressa, sem a ânsia de se explicar. Sustenta-se sobre um equilíbrio frágil semelhante ao dos haikais, em que a beleza surge da precisão minimalista. Breve e etérea.

Serviço: Rakushisha (Rocco, 132 págs., R$ 24)