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Homens preparam o atum pescado nas Maldivas: como filetar um atum em três minutos | Fotos: Richard Baker/Divulgação
Homens preparam o atum pescado nas Maldivas: como filetar um atum em três minutos| Foto: Fotos: Richard Baker/Divulgação
  • Mulheres trabalham no controle de qualidade em fábrica de biscoitos no Reino Unido
  • De Botton: se questionar já é privilégio

O filósofo suíço Alain de Botton faz parte do grupo de autores que conseguem traduzir conceitos da Filosofia para o público não-especializado, procurando responder questões e anseios atuais. O exemplo mais recente dessa preocupação é Os Prazeres e Desprazeres do Trabalho, publicado no Brasil pela Rocco.

No livro, o autor se dispõe a investigar trabalhos díspares – como o dos pescadores de atum nas Maldivas e dos fabricantes de biscoitos da United Biscuits, no Reino Unido – para tentar entender como surgem as frustrações e de que forma as pessoas lidam com suas expectativas.

Em entrevista à Gazeta do Povo, por e-mail, De Botton fala sobre o que dá significado ao trabalho, revela a verdade acerca da escolha entre dinheiro e satisfação pessoal, discute a paixão pelo que se faz e defende que "deveríamos ser identificados pelos nossos sonhos".

Você diz, no livro Os Prazeres e Desprazeres do Trabalho, que o trabalho é significativo quando pode gerar prazer ou reduzir o sofrimento dos outros. Como chegou a essa conclusão?

Uma das grandes fontes de satisfação no trabalho é o sentimento de que fazemos diferença para as vidas das pessoas, de que somos capazes – ao fim de um dia de trabalho – de deixar o planeta um pouco mais saudável, limpo e sensato do que era antes. Não estou necessariamente falando de mudanças enormes, a diferença pode ser meramente consertar o corrimão de uma escada, acabar com o rangido de uma porta, ou ajudar alguém a encontrar suas bagagens perdidas. A industrialização tornou alguns desses sentimentos de ajudar o próximo muito menos acessíveis, simplesmente por causa da escala. Tome como exemplo a fabricação de biscoitos. Eu passei tempo visitando a maior fabricante de biscoitos do Reino Unido, que emprega 15 mil pessoas em 12 pontos do país. Fazer biscoitos costumava ser tarefa de um artesão: era feito em um pequeno setor de produção e aqueles que o faziam podiam ver e até mesmo conhecer as pessoas que os compravam. Isso é improvável na United Biscuits, o que ajuda a explicar a sensação de lassitude e desespero ocasional que percebi, sobretudo em departamentos que lidam com contas ou com o transporte, em que os trabalhadores estão muito distantes de perceber o "significado" de suas atividades.

Muito da satisfação no trabalho depende de expectativas. De maneira geral, existem duas filosofias do trabalho. A primeira pode ser chamada de visão da classe operária, que encara o trabalho como uma atividade financeira. Você trabalha para se sustentar e sustentar aqueles que ama. Você não vive para o trabalho. Você trabalha à espera do tempo livre e do fim de semana – e seus colegas não são, necessariamente, seus amigos. A outra visão, muito diferente, é a da classe média, que vê o trabalho como absolutamente essencial para uma vida plena e elemento central do nosso crescimento e satisfação pessoal.

Há quem diga que o trabalho sem paixão ou comprometimento é uma das maldições da vida atual. Você concorda?

Temos de ter cuidado ao supor que o trabalho com paixão é normal – ele é desejável, com certeza, mas normal? Não. Meu livro mostra que, por milhares de anos, o trabalho era visto como um fardo inevitável e nada mais, algo para ser feito o mais rápido possível e do qual se escapava pela imaginação, pelo álcool ou pela intoxicação religiosa. Aristóteles foi apenas o primeiro de vários filósofos a dizer que ninguém poderia ser livre e forçado a ganhar a vida. Assumir um trabalho, qualquer trabalho, estava próximo da escravidão e frustrava qualquer chance de grandeza. A cristandade acrescentou à essa análise a conclusão ainda mais sombria de que a miséria no trabalho era uma consequência inevitável dos pecados de Adão e Eva. Uma avaliação mais otimista do trabalho como um todo teve de esperar até o século 18, a veio de grandes filósofos burgueses, de homens como Benjamin Franklin, que argumentou pela primeira vez que a vida no trabalho poderia estar no centro de qualquer ambição de felicidade. Foi durante esse século que nossas ideias modernas sobre trabalho foram concebidas – incidentalmente, no mesmo instante em que nossas ideias modernas sobre amor e casamento ganharam forma.

Na verdade, havia semelhanças impressionantes entre os domínios do amor e do trabalho. Na época pré-moderna, se presumia que ninguém poderia estar casado e apaixonado: casamento era algo que se fazia por razões puramente comerciais, para legar a fazenda da família ou assegurar a continuidade de uma dinastia. As coisas iriam bem se você mantivesse uma amizade tépida com sua esposa. Enquanto isso, amor era algo que você fazia com sua amante, à margem, com prazer desvinculado das responsabilidades de se criar filhos. No entanto, os filósofos do amor argumentam que se deve almejar o casamento com a pessoa por quem se está apaixonado em vez de apenas ter um caso com ela. À essa ideia incomum, foi acrescentada a noção ainda mais peculiar de que se deve trabalhar por dinheiro e também para realizar sonhos – uma ideia que substituiu a percepção anterior de que o trabalho durante o dia dava conta do aluguel e qualquer coisa mais ambiciosa deveria acontecer no tempo livre, uma vez que o dinheiro já estivesse garantido.

Nós somos herdeiros dessas duas crenças muito ambiciosas: de que você pode estar apaixonado dentro do casamento e de que pode curtir o seu trabalho. Se tornou impossível para nós pensar que alguém pode ser feliz desempregado, da mesma forma que parecia impossível para Aristóteles pensar que você poderia trabalhar e também ser humano.

A busca pela felicidade no ambiente de trabalho é uma espécie de mito?

Enquanto escrevia meu livro, umas das coisas que mais me consolaram foi descobrir o quanto é rara e historicamente ambiciosa a ideia moderna que nosso trabalho deveria render felicidade com uma frequência diária. O fato mais estranho relacionado ao mundo do trabalho não é a quantidade de horas que investimos nem as máquinas que usamos para executar nossas tarefas. O aspecto mais extraordinário da vida no trabalho é, no fim, psicológico em vez de econômico ou industrial. Tem a ver com nossas atitudes em relação ao trabalho, mais especificamente com nossa ampla expectativa de que o trabalho deveria nos fazer felizes, de que deveria estar no centro de nossas vidas e de nossas ambições. A primeira pergunta que tendemos a fazer para pessoas que acabamos de conhecer não é de onde vieram ou quem seus pais foram, mas questionamos o que eles fazem – pressupondo que assim descobriremos a essência de suas identidades.

Quando o trabalho não vai bem, é útil lembrar que nossas iden­­tidades transcendem o que di­­zem os cartões de visita, que somos pessoas muito antes de nos tornarmos trabalhadores – e continuaremos a ser humanos depois de largarmos nossas ferramentas pa­­ra sempre. Como alguém completamente secular, me sinto fulminado pela afirmação de Santo Agos­­tinho de que é pecado julgar um homem a partir de seu status ou de sua posição na sociedade. Em outras palavras, quando o trabalho não vai bem, precisamos lembrar de distinguir nosso senso de valia do trabalho que fazemos.

Você consegue escolher entre ser mal pago num emprego que ama, ou fazer muito dinheiro num emprego que detesta?

Sim, mas, às vezes, você já tem sorte de poder fazer essa escolha. Muitas pessoas nem sabem qual o trabalho que poderiam amar. Pode ser imensamente difícil descobrir suas ambições, descobrir uma "vo­­cação". Na minha opinião, nem todos temos vocações, algo especial para o que somos perfeitos. Não devemos, necessariamente, ficar tristes por homens e mulheres que fizeram sacrifícios grandes para um emprego pobre que eles adoram: pelo menos eles têm esse objeto de devoção.

Qual é a maior satisfação que você tem com o trabalho?

É o sentimento de ter compreendido alguma ideia complexa e importante, e ter sido capaz de expressá-la em palavras. Por importante, não quero dizer especialmente rara ou estranha. Eu me refiro a alguma ideia cotidiana, talvez uma que todos nós temos, mas da qual nunca se leu a respeito, que não foi efetivamente colocada em palavras. Grandes ideias comuns – essas são minhas favoritas!

Você acha que, hoje, ainda podemos dizer que as pessoas são o que fazem?

Não acho que as pessoas sejam o que fazem porque, muitas vezes, se assume um trabalho por acaso. Mas, com certeza, penso que so­­mos o que sonhamos em fazer um dia. Nós deveríamos ser identificados pelos nossos sonhos.

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