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 | Divulgação/Museu Villa-Lobos
| Foto: Divulgação/Museu Villa-Lobos

Entrevista com Mario da Silva, violonista, mestre em música e professor da Escola de Música e Belas Artes do Paraná

Violonista paranaense com carreira voltada à produção contemporânea, Mario das Silva já tocou, como solista, o Concerto para Violão e Orquestra, de Heitor Villa-Lobos, no Brasil e no exterior. Também doutorando em Música, o instrumentista revela por que violonistas têm interesse especial pelas obras de Villa-Lobos, que praticamente reinventou o instrumento, lhe conferindo características sonoras inéditas. Leia a seguir trechos da entrevista, concedida por e-mail.

Villa-Lobos demorou a ser reconhecido no Brasil enquanto músico e compositor diferenciado? Seria esse um mal dos grandes artistas brasileiros?

Em se tratando de Villa-Lobos, há uma relação muito dicotômica entre o seu reconhecimento durante sua trajetória e a impressão de que datas comemorativas são necessárias para reforçar a memória. Podemos tratar o conceito "diferenciado", como aquele em que o compositor usa o material sonoro com suas influências e impressões de seu habitat natural, psicológico e social, ao mesmo tempo em que esse material possui reflexões, relativizando e questionando as formas vigentes de sua época, fazendo com que não caia em repetições mecanicistas formais. Sua habilidade em desenvolver e manipular o material sonoro, sua convincente propaganda de divulgação e sua predestinação em ser porta-voz do nacionalismo brasileiro perante o mundo, fez com que seu nome reverberasse em vários países e em diversos segmentos artísticos, sociais e intelectuais. Villa-Lobos era reconhecido enquanto compositor diferenciado até a onda nacionalista se enfraquecer no começo da década de 60, quando a diversidade cultural e comercial estrangeira entrou no mercado brasileiro por conta de pressões políticas internacionais.

Acredito que o mal dos grandes artistas brasileiros é não ter espaço para manifestarem sua produção por conta de pressões de interesse do capital estrangeiro fonográfico – no caso da música. Villa-Lobos, principalmente da década de 30 para frente, era reconhecido como compositor da situação e representante do nacionalismo brasileiro. O que nos faz observar que hoje em dia mudou-se o foco da produção cultural. A informação e a mídia, que antes estava inserida no Estado, hoje residem nos focos da iniciativa privada neoliberal, de livre concorrência do mercado cultural, seja lá o quê isso signifique.

Quais as principais características da obra de Villa-Lobos? Ao mesclar música erudita e os "sons naturais", como ele dizia, houve uma quebra de paradigma na linha do tempo da música clássica/ erudita?

O que existe é o desenvolvimento rítmico e a insubordinação formal em prol da sonoridade. Muitos pensadores já estavam questionando a música subordinada à forma. Eles queriam argumentar a autonomia do som. Stravinsky já havia pesquisado isso, colocando a percussão na frente da orquestra, em termos sonoros. Villa-Lobos ampliou as possibilidades sonoras e idiomáticas do violão realizando e desenvolvendo um repertório próprio. Ele conseguiu fazer daquele instrumento, estigmatizado por ser um acompanhante do canto e um reprodutor de formas tradicionais clássicas, um veículo sonoro poderoso. A sonoridade do violão perpassa por trechos altamente melódicos, semelhantes a um violoncelo, ao mesmo tempo que simboliza aspectos subjetivos e inconscientes em efeitos, texturas e registros não usuais.

Por que violonistas têm uma paixão especial pelas obras do compositor?

A repercussão entre violonistas é sempre imediata em relação aos avanços idiomáticos que ele trouxe. A polirritmia, o tratamento percussivo camuflado em procedimentos acordais, cordas soltas acompanhando sequência de acordes paralelos que dão mais qualidade a sonoridade (ouçam o "Estudo 10"), todo esse universo foi explorado por ele e transportado à tessitura do instrumento. Ele transportou para o violão a sonoridade grave e rica de harmônicos de seu instrumento principal, o violoncelo (ouçam o "Estudo 11" e o "Prelúdio 1"). O violão era seu instrumento de comunicação, era seu elo para com os instrumentistas espontâneos, das casas de choro e samba. O violão era seu caderno de anotações musicais.

Ele pode ser citado como o exemplo de musicista capaz de criar um cenário musical tipicamente brasileiro, incluindo aí questões sociais, folclóricas e políticas?

Mais do que um simples paisagista musical, ele soube distorcer, mimetizar, relativizar cores e dar ambiguidade a esse cenário quase como um impressionista. Aquele que der um mergulho nas suas obras vai encontrar elementos que reflitam e simbolizem diversas manifestações culturais brasileiras. Espe­­cialmente no desenvolvimento rítmico, ele foi capaz de traduzir aspectos particulares, inconscientizados e sutis da prática musical de seu tempo.

Qual a importância do compositor na educação musical no Brasil, na década de 1930?

Na década de 30, surgiram vários estudos sobre a formação do "caráter nacional brasileiro", como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e os intelectuais começaram a partilhar a crença de que, através da educação e da formação das mentes, a sociedade poderia ser remoldada e redefinida de uma maneira mais positiva. A esperança de que os problemas do país seriam resolvidos não estava mais depositada em teses como a do "branqueamento progressivo" da população, mas em um sistema educacional que a guiasse para um equilíbrio social moderno. Foi dentro deste período de "modernização conservadora" que Villa-Lobos se inseriu em um projeto ambicioso de educador musical. Talvez hoje em dia alguns desses ideais estejam ultrapassados, porém alguns fatores de assimilação de conteúdo através de um orgulho cívico podem ser repensados em nossa sociedade atual.

Sua obra ainda é atual, musical e socialmente falando? O que mais há para ser explorado?

Do ponto de vista musical, a composição não se utiliza mais de sistemas e aspectos desenvolvidos por ele, porém é possível encontrarmos obras atuais que se utilizam de elementos e contextualizam materiais desenvolvidos por Villa-Lobos. Há uma geração pós-Villa-Lobos muito comprometida com seu estilo. O segundo ponto diz respeito a interpretação, que pressupõe a contextualização, buscando equilibrar o aprimoramento das sonoridades e das condições atuais de instrumentos com a fidelidade ao texto, mesmo que com uma tênue possibilidade de relativização em busca da melhoria da qualidade sonora. O texto de Villa-Lobos deve chegar ao público com uma certa provocação e informação de sua inquietude. O universo sonoro é um campo inesgotável a ser explorado e os bons artistas que mais nos legaram são do calibre de Villa-Lobos, que dizia "deixo cartas a posteridade". Eu diria que ele deixou sonoridades a serem exploradas pela posteridade.

Qual o maior legado do compositor que ainda permanece 50 anos após sua morte e o que diria para aqueles que pretendem manter o primeiro contato com Villa-Lobos?

O seu maior legado é a busca e a ambição por algo novo. Villa-Lobos, quando ligado ao ideal modernista, obteve muita eficácia a mediação que pregava a teoria da modernidade. Apenas alguém capaz de permitir que as próprias fantasias fluíssem de forma tão livre e ao mesmo tempo tão compreensível para as outras pessoas seria capaz de produzir o que ele produziu. Aqueles que entrarem em contato com Villa-Lobos pela primeira vez, devem olhá-lo (ouvi-lo) como uma espécie de simbiose de si próprio. Ouçam as obras para violão solo e depois as peças de câmara com violão como Distribuição de Flores (para flauta e violão) e Sexteto Místico. O contato com as "Bachianas" – do ponto de vista sonoro – é preferencialmente melhor tê-lo primeiro do que com os "Choros". Embora pareça um factoide, tentem assimilar esse compositor como a complexidade que tentamos assimilar o próprio Brasil, suas diversidades sociais, naturais, antropológicas e psicológicas.

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