Maysa morreu como viveu boa parte de sua vida. Só. Na tarde do dia 22 de janeiro de 1977, a cantora pegou sua Brasília azul, munida de algumas poucas peças de roupas, muitos cigarros, caixas de comprimidos para emagrecer, discos e fitas cassetes, e partiu para Maricá, no litoral do estado do Rio de Janeiro. Queria passar o fim de semana escutando boa música e pintando quadros, sua nova paixão. Nunca chegou. Ao tentar desviar de um outro veículo, o carro se chocou, a toda velocidade, em um cabo de proteção da ponte Rio-Niterói. Foi o que bastou para que o atormentado coração da diva parasse de bater. E seu mundo terminasse de cair. Ela tinha apenas 40 anos e estava ouvindo Frank Sinatra.

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Para lembrar os 30 anos de morte de Maysa, duas biografias da artista, ambas escritas por jornalistas, estão chegando às livrarias. Pela editora Novo Século, está saindo Meu Mundo Caiu – A Bossa e a Fossa de Maysa, de Eduardo Logullo. A Globo, por sua vez, lança Só numa Multidão de Amores, de Lira Neto. Tanto um quanto o outro, além de reconstituir a complexa trajetória de vida da cantora, têm uma missão ainda mais importante: resgatar sua obra e legado artístico, tentando repensar sua posição no cenário da história cultural brasileira, que nas últimas décadas a condenou a um relativo esquecimento.

Heroína existencialista

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Maysa é uma daquelas personagens que, se não tivesse existido de carne e osso, deveria ter sido inventada por um ficcionista. Conforme a abordagem, poderia ser tanto a heroína de um melodrama caudaloso, com direito a amores, dores e final trágico, ou a protagonista de um romance existencialista, norteado pela discussão da tortura que é, para alguns, a condição de estar vivo.

O livro de Eduardo Logullo não se envergonha de, até certo ponto, optar pelo primeiro viés, mais rocambolesco e menos preocupado em dissecar a complexidade da personalidade de Maysa ou em ouvir centenas de fontes para construir um retrato preciso e distanciado da diva.

Escrito numa linguagem bem coloquial e rápida, que tenta imprimir à narrativa um ritmo quase cinematográfico, com direito a cortes, flashbacks e outros recursos da sétima arte, Meu Mundo Caiu – A Bossa e a Fossa de Maysa não tem o peso da obra de Lira Neto, mais aprofundada e vocacionada para se tornar livro de referência, fruto de uma pesquisa de dois anos. A vantagem é que a biografia de Logullo também não pretende ser uma obra definitiva. Um livro acaba complementando o outro.

Berço esplêndido

Quando Maysa entrou em cena no mundo da música brasileira, uma moça de família que se prezasse não podia sequer sonhar em se tornar estrela do rádio e vender milhões de discos. Tinha até a permissão de amar de paixão cantoras como Ângela Maria, Dalva de Oliveira ou Nora Ney. Ouvir seus LPs até o vinil furar, mas de forma alguma poderia almejar ser como elas quando crescesse. Essa ambição era simplesmente incompatível com a condição de ter nascido em berço esplêndido e ponto final.

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Maysa desafiou essa lógica conservadora.

Filha de uma abastada família da alta burguesia do Espírito Santo, desde pequena ela demonstrou ser tinhosa e voluntariosa. Quando ouvia um "não", seus faiscantes olhos verdes – que o poeta Manoel Bandeira definiu como "dois oceanos não-pacíficos" – eram capazes de fuzilar em desafio. "Por que não?", queriam indagar.

Quando a família de Alcebíades Monjardim se transfere para São Paulo, no início da década de 40, o destino de sua filha mais velha, Maysa, começa a se desenhar. Como o patriarca e sua mulher, a doce e elegante Inah, adoravam a vida em sociedade, fazendo questão de marcar presença nos salões da alta burguesia e aristocracia paulistanas, nada mais natural que eles desejassem dar à filha uma educação de primeira, no melhor estilo quatrocentão da paulicéia desvairada. Matricularam Maysa, aos 8 anos, no colegio religioso Sacre Coeur de Marie (Sagrado Coração de Maria) em regime de internato. Para que a garotinha saísse de lá uma dama, com francês e inglês fluentes – além de todo o arsenal de boas maneiras e traquejos sociais que uma jovem mulher da elite poderia desejar.

Mal sabiam a longa temporada da filha no internato das freiras deixaria seqüelas e seria responsável por boa parte dos traumas que acompanhariam Maysa por toda a vida, como a dificuldade em verbalizar seus sentimentos e constante sensação de abandono. Também justificariam seu alcoolismo.

Castigos em quartos escuros, duras penitências não-explicadas, longos períodos de silêncio. Tudo isso somado a um clima de vigilância e controle tiveram sobre o espírito independente e naturalmente rebelde de Maysa um impacto devastador. Quando deixou o colégio, aos 15 anos, a primogênita do clã dos Monjardim desejava fugir de Deus e da Igreja como o diabo da cruz. Queria saber apenas de salto alto, vestido rodado e muito violão.

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Música e casamento

Como Alcebíades e Inah eram liberais, não apenas inseriram de imediato a filha na sua roda de amigos endinheirados e sofisticados como também permitiram que ela os presenteasse com seu talento. Foi assim que Maysa conheceu seu futuro marido, o sedutor André Matarazzo, quase 20 anos mais velho do que ela e pai de seu único filho, o hoje diretor de cinema e televisão Jayme Monjardim.

A personalidade forte e o talento de Maysa haviam conquistado o herdeiro de uma das famílias mais ricas e poderosas do país. O irônico é que essas mesmas características, irresistíveis no preâmbulo amoroso entre os dois, seriam, em grande parte, também as grandes razões para o desquite do casal anos mais tarde.

A verdade é que, pelo menos até então, Maysa seguia praticamente à risca um roteiro de contos de fadas que não havia ajudado a escrever. Quando tomou consciência disso, chutou tudo – família, tradição e propriedade – para o alto. E foi viver sua vida. Ainda que aos trancos e barrancos.

Carreira

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A cantora e compositora Maysa nasce quando seu casamento começa a morrer. Sua verdadeira vocação era para ser um ícone da boemia, tornar-se uma cronista da vida noturna, especialmente quando cantava a melancolia, dores de amores fracassados ou não-correspondidos. E, para isso, tinha de viver intensamente. Nesse aspecto sua turma não era mesmo aquela dos engomados salões paulistanos, cheios de salamaleques e sobrenomes, mas, sim, aquela das mesas dos bares cariocas, freqüentadas por gente como Dolores Duran, Antonio Maria, Vinicius de Moraes e Tom Jobim, entre outros.

O trunfo de Maysa como artista era que, filha de elite, trouxe para sua música uma sofisticação e um charme inéditos até então no universo das cantoras brasileiras. Virou musa imediata, antecipando a chamada era das celebridades, sendo alvo freqüente de paparazzi e colunistas. A obra e a vida de Maysa se confundiam. E o público adorava, deitava e rolava.

Se nos primeiros discos, Maysa mergulhou de cabeça no samba-canção (e boleros) de cortar os pulsos, cujos melhores exemplos são os clássicos de sua autoria "Ouça" e "Meu Mundo Caiu", Maysa também soube perceber que havia algo instigante e revolucionário acontecendo na música brasileira no final da década de 50: a bossa nova.

Tanto que de musa da fossa Maysa surpreendeu a todos sendo a primeira a gravar a música "O Barquinho", de Ronaldo Bôscoli (de quem foi namorada) e Roberto Menescal. A canção, símbolo do movimento, foi primeiro gravada pela ex-senhora Matarazzo e não por Pery Ribeiro (filho de Dalva de Oliveira), como reza a lenda.

Quando morreu, em 1977, no entanto, Maysa estava em um quase ostracismo. Não gravava há anos e seu lugar havia sido tomado por um time hoje considerado como a maior geração de vozes femininas da canção brasileira, à qual pertencem Elis Regina, Maria Bethânia e Gal Costa. Queria voltar, mas não encontrava um caminho. Em plena ditadura, sua fossa existencialista parecia anacrônica, fora de lugar e antiquada. Passados 30 anos, por uma triste ironia, soam hoje modernas em sua eternidade e, sobretudo, pela verdade que o canto triste, por vezes rouco, mas sempre aveludado de Maysa contém.

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