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Livros

A (monstruosa) natureza humana

Dentro da literatura de King, pessoas comuns enfrentam situações extraordinárias, que geralmente as colocam no limite da própria razão. Isso inclui histórias que nem sempre se caracterizam como sobrenaturais, como é o caso de Jogo Perigoso, no qual uma mulher passa dois dias delirando com o passado algemada em uma cama.

"O mais interessante do universo literário do autor não são as criaturas bizarras, mas os personagens", observa Edilton Nunes, editor do site StephenKing.com.br. São pessoas que se preocupam com contas no fim do mês e com a namorada que engravidou quando não deveria. Pressionadas por situações adversas, elas se revelam monstruosas.

Um exemplo recente é o livro Sob a Redoma, adaptado com sucesso de público em formato de série televisiva este ano. Na trama, uma cidade fica presa dentro de um domo invisível. Longe das autoridades, os personagens começam a se revelar autoritários e sádicos.

Por se interessar muito pela natureza humana, King se aproxima do que podemos caracterizar como naturalismo fantástico. Alguns de seus títulos são verdadeiros tratados sobre a maldade. É o caso do conto O Aprendiz, que conta a história de um estudante de colegial que se aproxima de um torturador nazista aposentado e escondido no bairro em que mora.

Variedade

King escreveu cerca de 70 obras, o que inclui livros de ficção, não ficção, ensaios e coletâneas de contos. Em mais de uma ocasião, o autor publicou três títulos por ano. Em 1983, chegaram às livrarias Christine, O Cemitério e A Hora do Lobisomem. Em 1987, foi a vez de Olhos do Dragão, Angústia e Os Estranhos.

A prolixidade fez com que sua produção apresentasse um rol de temas variáveis. Durante as últimas quatro décadas, ele escreveu sobre viagens no tempo, dimensões paralelas, lobisomens, vampiros, poderes telecinéticos e fãs obcecados, entre inúmeros outros elementos. "Em vários momentos, a própria escrita se tornou tema de uma narrativa, como é o caso de A Metade Negra", lembra o jornalista Carlos Primati, especializado no gênero de horror.

"Ao contrário de escritores como Anne Rice e o brasileiro André Vianco, especializados em vampiros, King ampliou muito seu escopo de produções. Ele trata praticamente de todas as questões envolvendo o horror", observa o escritor gaúcho Duda Falcão.

Profundo conhecedor do gênero, o escritor chegou a lecionar sobre esse tipo de produção na Universidade do Maine. Em vários momentos, sua obra conversa com a de outros escritores, como Peter Straub, Lovecraft e W. W. Jacobs. As referências, no entanto, não ficam apenas nos livros. King cita letras de músicas de rock, histórias em quadrinhos e episódios de programas como Além da Imaginação e Jornada nas Estrelas em seus livros.

A obra que talvez mais extrapole esses limites de referência seja a saga A Torre Negra, composta por oito livros. Na trama, um pistoleiro vaga por diferentes mundos em busca da torre do título. Misturando referências que vão do universo de J. R. R. Tolkien, de O Senhor dos Anéis, ao velho oeste norte-americano, o autor realizou uma série de livros ambiciosa. Há anos Hollywood tenta adaptá-la, mas, pela grandiosidade da trama, o projeto ainda não saiu do papel.

A Torre Negra marca também outro elemento recorrente em sua obra, o diálogo entre os universos que constrói. "Muitos dos livros de Stephen King apresentam os mesmos personagens e os mesmos vilões. Mas, nessa saga isso é muito mais evidente", diz o cineasta Davi de Oliveira Pinheiro, diretor do filme Porto dos Mortos e profundo admirador do escritor norte-americano.

Entre sucessos e decepções

Stephen King deve a fama à sétima arte. Mais especificamente ao sucesso de Carrie – A Estranha (1977), longa-metragem de Brian De Palma, que o catapultou ao estrelato

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  • Longa-metragem de Brian De Palma catapultou obra de Stephen King ao estrelato

Quando o escritor Stephen King tinha quatro anos, ele saiu para brincar com um vizinho nas proximidades de uma linha de trem. Quando voltou para casa, estava branco. Seu amigo havia sido atropelado por uma locomotiva e se tornou pedaços de um corpo estendidos pelo trilho. Esse fato na biografia do autor já foi usado para tentar explicar suas obsessões literárias, marcadas pela presença de criaturas sobrenaturais, mortes e pela escuridão que existe na alma humana.

O mais curioso é que King, o homem que desde o fim dos anos 1970 é tido como o mestre do horror na literatura e no cinema, nem ao menos se recorda da história. Muito menos acredita que ela seja a origem das mais de 70 obras que escreveu. "O trabalho de um escritor é fruto da vontade de sua própria consciência", defendeu ele certa vez.

O autor norte-americano se tornou uma referência no cânone do horror. Aos 66 anos, pode se orgulhar de ser um dos nomes mais prolixos de sua geração e o mais importante escritor vivo a atuar no gênero, ocupando lugar de destaque no petit comité formado por Mary Shelley, Bram Stoker, H. P. Lovecraft e Edgar Allan Poe, entre outros.

Hoje, sua obra está no coração de Hollywood. Seu nome funciona como uma marca de qualidade, que vai acima dos títulos dos filmes que adaptam seus livros. Multimidiático, King também está no mundo digital, nos quadrinhos e na televisão.

Lisa Rodak, autora da biografia Stephen King, Coração Assombrado (Darkside Books, 2013), afirma que essa influente obra reflete os pesadelos do escritor. Em mais de uma ocasião, ele afirmou que tira suas ideias de sonhos e delírios que, por meio das palavras, ganham fôlego e se transformam em narrativas.

Mais estranho do que a natureza da produção do escritor é a obsessão dos fãs por suas obras. Desde o lançamento de Carrie, em 1974, quando King ainda tinha 27 anos, o escritor consolidou um público fiel, que se alimenta das mortes, monstros e transgressões criadas pelo autor. "Escrevo para pessoas que reduzem a velocidade do carro quando passam por um acidente. No fundo, o que todos querem é ver se há mortos", justifica-se no prefácio do livro de contos Sombras da Noite.

Para o crítico literário Noel Carroll, autor do livro A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração (Papirus, 1999), obras como as de King atraem leitores por permitir experimentações. Na prática, um filme como Colheita Maldita (1984) é como um pulo de bungee jumping, que buscamos para ter a sensação de cair, sem precisar enfrentar as consequências de não estar atados a uma corda.

"O ser humano também gosta de transgressões, que ultrapassam os limites do real. Isso provoca uma identificação com sentimentos que, muitas vezes, não são racionalmente explicados", complementa Thereza Cristina Lima, professora do curso de Letras do Centro Universitário Uninter.

Sucesso

King nasceu em Portland, no Maine (cenário da maioria de suas obras). Durante a infância, leu avidamente histórias em quadrinhos e livros de horror e se tornou um profundo admirador de cinema, embora sempre tenha tido predileção por filmes B. Desde o colegial, explorava o medo em contos, que publicava de graça em revistas de literatura.

Formado em Estudos Literários, o escritor passou por maus bocados no início de sua vida adulta, quando morou em um trailer e teve dois empregos para pagar as contas da família. Carrie, seu primeiro livro publicado, foi salvo da lixeira antes de ser enviado a uma editora.

A boa recepção da publicação nas livrarias garantiu uma adaptação ao cinema em 1977, pelas mãos do diretor Brian De Palma. A estreia do filme fez com que, do dia para a noite, King se tornasse uma celebridade.

Durante a década de 80, viu suas obras serem adaptadas por diretores como Stanley Kubrick (O Iluminado, de 1980), John Carpenter (Christine, O Carro Assassino, de 1983) e David Cronenberg (A Hora da Zona Morta, de 1983). Na época, chegou a fazer participações em comerciais de cartão de crédito e gravou pontas em alguns filmes.

Sua paixão, no entanto, sempre foram as palavras. Há quatro décadas, ele mantém a rotina de escrever ao menos três horas por dia. O que lhe rende, às vezes, mais de uma obra por ano. A mais recente é Doctor Sleep, lançada este mês nos Estados Unidos e que retoma o universo de O Iluminado.

Uma das maiores características de sua extensa obra é o ritmo que imprime em seus livros. "Qualquer um consegue terminar seus tratados de mil páginas rapidamente", lembra Duda Falcão, escritor gaúcho de horror, que lançou a obra Mausoléu este mês em Porto Alegre.

Avesso à literatura erudita, King apresenta uma linguagem de fácil acesso. Não por acaso, seus livros figuram entre os mais vendidos logo depois de lançados. O fato de suas histórias estarem espalhadas em diversos produtos só o deixa mais próximo do público que, por muito tempo, vão ser assombrados pelos pesadelos e delírios do escritor.

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