O único livro de Joseph Mitchell (19081996) traduzido no Brasil, O Segredo de Joe Gould, saiu pela primeira vez nos EUA há meio século. No posfácio da edição brasileira, o documentarista João Moreira Salles conta uma lenda sobre a capacidade do autor de tolerar o tédio e dizem que isso é algo fundamental para um bom jornalista. Mitchell teria passado horas vendo um pica-pau bicar uma árvore.
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A menos que você seja um ornitófilo, a ideia de passar horas encarando um pássaro parece penosa. A maioria olharia o pássaro por alguns minutos e veria só um pica-pau bicando uma árvore. Mas não Mitchell. Ele tinha paciência suficiente para sentar e esperar e testemunhar o pica-pau durante horas e horas, até ver o passarinho derrubar a árvore. Ele tinha uma disposição extraordinária para conviver com banalidades à espera de um fato incomum. A história mais famosa que escreveu é um exemplo disso.
O personagem
O Joe Gould no título do livro era um boêmio que vivia em Nova York. Mitchell o conheceu nos anos 1940 depois de ouvir boatos sobre um velho maluco com ideias bisonhamente ambiciosas. Ele queria escrever uma obra chamada A História Oral da Humanidade.
De família rica, Gould se graduou em Harvard, mas se recusou a seguir carreira na medicina como o pai. Oscilando entre a genialidade e a loucura (na verdade, a tensão entre uma e outra é o que move Mitchell e a história), Gould se torna um excêntrico maltrapilho que depende da boa vontade alheia para ter onde dormir e o que comer. Enquanto isso, dizia ele, trabalhava na História Oral. A ideia era transcrever ou transformar em literatura as conversas que pinçava em toda parte: no metrô, nas ruas, nos cafés, na noite.
Quando decidiu fazer um perfil de Gould para a revista The New Yorker, publicado em 1942 com o título "O Professor Gaivota", Mitchell entrou numa relação que duraria anos e renderia ainda uma espécie de retratação do jornalista, envolvendo o tal segredo de Gould.
O livro
Sem fazer suspense, o segredo é que a História Oral da Humanidade não passava de um delírio, milhares de páginas preenchidas com anotações que faziam pouco sentido ou sentido nenhum, espalhadas pelas casas de diversas pessoas, sem qualquer valor literário.
Depois da morte do boêmio, Mitchell voltou à história e retomou o personagem para revelar que desconfiava dele. Desconfiou logo nas primeiras semanas. Achava que Gould era uma figura excêntrica, mas quase tudo que dizia era bravata. No desfecho do livro, ele procura se afastar do perfilado que o atormentou durante anos pedindo dinheiro e outros tipos de ajuda , mas ainda dá a ele o benefício da dúvida, deixando no ar a possibilidade de que alguém um dia encontre a História Oral.Se fosse um super-herói, a superfraqueza de Mitchell seria, aparentemente, a autocrítica. "Aparentemente" porque ninguém sabe dizer ao certo por que ele passou os últimos 30 anos da vida indo para o trabalho todos os dias, sentando-se diante da máquina de escrever na sala que tinha dentro da redação da New Yorker (onde trabalhou por 58 anos!), batendo palavras sem publicar nada.
O que fez durante essas jornadas de trabalho permanece um mistério, embora digam por aí em lugares como o obituário do jornal The New York Times que ele nunca mais teve um texto publicado porque era perfeccionista e nada do que fazia o agradava.
Testemunhas disseram ter ouvido a máquina de escrever funcionando dia a dia. Porém, depois do expediente, a mesa estava sempre vazia. Nenhuma página, nada. Essa rotina só foi possível porque ele trabalhava para uma publicação conhecidíssima por dar aos colaboradores a maior regalia que um jornalista pode ter: tempo.
Um inédito
Quase duas décadas depois da morte de Mitchell, em fevereiro de 2013, a New Yorker publicou um texto inédito, chamado "A vida assombrada das ruas". Uma versão traduzida por José Rubens Siqueira saiu no número 14 da revista serrote. Foi o primeiro de uma série de três fragmentos encontrados pelo biógrafo Thomas Kunkel. Os outros dois permanecem inéditos, assim como a biografia, que Kunkel espera publicar em 21 de abril de 2015. Se eram personagens fascinantes que sustentavam O Segredo de Joe Gould e My Ears Are Bent, os dois livros que representam toda a bibliografia de Mitchell, na "Vida assombrada das ruas" é a cidade de Nova York o alvo da lendária paciência do autor.
O afetos
O primeiro dos três textos descobertos por Kunkel seria a introdução para um livro de memórias inacabado e funciona como uma espécie de lista dos afetos nova-iorquinos de Mitchell.
Ele fala sobre os ornamentos de prédios antigos que sobrevivem à fuligem, ao tempo e ao cocô dos pombos. Considera fascinante a "ubiquidade" desses enfeites e diz que a visão de um desses "sobreviventes", por mais ridículo que seja, é capaz de deixá-lo feliz por várias horas. Num comentário sobre o texto até então inédito de Mitchell, Erin Overbey escreveu, na página da New Yorker na internet, que o jornalista foi o "primeiro biógrafo de verdade" que Nova York teve.
Não faltam escritores falando sobre a cidade, mas é como se Mitchell tivesse feito por ela o que Ernest Hemingway fez pela Paris dos anos 1920. Ou Joyce, pela Dublin dos 1900.
"Não era um nativo, mas poderia bem ter sido: aqui era o meu lugar", escreveu Mitchell, para em seguida desabafar sobre uma sensação ruim, de que a cidade o havia passado e de que não fazia mais parte dela. Foi quando começou a aumentar o número de visitas que fazia à Carolina do Norte e o tempo que passava lá em cada uma das viagens. Ele diz que sentia saudade da terra natal quando estava em Nova York e vice-versa. Até começar a se sentir fora do lugar também na Carolina do Norte.
"A vida assombrada das ruas" termina com o jornalista dizendo que, durante um passeio pelas ruínas do Washington Market, algo aconteceu com ele que o levou a superar aos poucos a depressão. "Ocorreu uma mudança em mim. E é sobre isso que quero falar." Hoje, ainda não se sabe que mudança é essa, pois os outros dois textos continuam inéditos.
Pela maneira como descrevia os cenários nova-iorquinos e a relação que cultivou com a cidade, Mitchell conseguia ter um olhar estrangeiro sobre tudo que via, ainda que estivesse vivendo ali há décadas. Talvez fosse o hábito de passar temporadas com a família, de volta às paisagens rurais do Sul, talvez o fato de ter seguido a orientação de um de seus primeiros editores, no Herald Tribune: palmilhar a cidade e dar um jeito de conhecer cada ruela com suas idiossincrasias e personagens.
O precursor
Quando Mitchell começou a escrever, ainda não se falava em new journalism (ou jornalismo literário). O termo só surgiria nos anos 1960 com uma turma de escritores que manjava muito de autopromoção.
O que se via nos textos de Mitchell, três décadas antes de Gay Talese escrever A Mulher do Próximo e quatro antes de Truman Capote publicar A Sangue Frio, era exatamente o que os "novos jornalistas" propunham: usar ferramentas da ficção para escrever não ficção.
Por exemplo: é espetacular o uso que Mitchell faz das aspas dentro do perfil de Joe Gould. Ele deixa o personagem tagarelar às vezes durante várias páginas sem interrupção.
A fala de um entrevistado é um ponto pouco discutido e extremamente controverso do jornalismo. Uma controvérsia que Janet Malcolm encarou de frente.
Sobre falar em prosa
Em O Jornalista e o Assassino, Malcolm escreveu uma "crônica de traição jornalística", sobre um médico acusado de matar a mulher e as duas filhas que foi biografado por um jornalista duas-caras. O biógrafo se chama Joe McGinniss. Este se aproximou da fonte, fez amizade com ela, conseguiu as informações que queria para então retratar o médico como um assassino, culpado das acusações que recebia. McGinniss acabou sendo processado pelo médico, que se sentiu traído depois que a biografia foi publicada.
Malcolm questiona a relação entre o jornalista e a fonte, mostrando o que pensa já na frase célebre de abertura: "Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável".
Ela também levou um processo, movido pelo biógrafo Joe McGinniss, por causa de afirmações feitas no livro. O processo durou quase uma década e terminou com um acordo de quantia "modesta". Tendo sobrevivido à experiência, a autora escreveu um posfácio, argumentando com uma clareza que não se vê em qualquer lugar sobre os percalços do trabalho de um jornalista. Um deles, ela explica, é que ninguém fala em prosa. E sempre é preciso transformar um discurso vago, confuso, cheio de lacunas em um texto com sentido. É preciso transformá-lo em prosa. Ela dá exemplo mostrando uma transcrição literal de um entrevistado seguida do texto editado, que saiu na versão final do livro.Considerando os argumentos de Malcolm, ver o que faz Mitchell é impressionante. E a referência dele, por estranho que pareça, era James Joyce.
(Nota: estudei Jornalismo durante quatro anos e trabalho na área há 15 e nunca ouvi ninguém abordar, nem de leve, as dificuldades de se transcrever uma entrevista, ou de transformar uma fala em prosa.)
Dublin
Joyce nasceu e cresceu na capital irlandesa, mas não viveu nela depois de adulto. E retratou a cidade como nunca ninguém antes ou depois dele. O exílio que adotou ao longo da vida, escapando de dívidas, de um país para outro, parece ter dado ao autor a perspectiva para olhar Dublin como alguém que segura uma fruta ou como Hamlet encarava o crânio de Yorick. As histórias, os mitos, os personagens e as ruas dublinenses ganharam a posteridade depois que Joyce se dispôs a escrever sobre elas.
As conexões de Joyce com Dublin e com os dublinenses funcionam como pistas para entender por que um jornalista nascido numa região rural dos Estados Unidos reverenciava o ficcionista que escapou da Irlanda e transformou endereços e pessoas de fato, e as histórias que os envolviam, em literatura.
Quem trabalhou com Mitchell sabe que o americano nascido na Carolina do Norte adorava Joyce. E ele era um fã barra-pesada, do tipo que passou parte da vida relendo com gosto o Finnegans Wake, livro considerado incompreensível mesmo por admiradores do autor de Ulysses o Ulysses que começou a ser escrito 25 anos antes da publicação do Wake e já não era fácil.
O afeto de Mitchell por Joyce soa inusitado de saída porque o primeiro era jornalista e é difícil aceitar que um escritor preocupado com fatos possa admirar tanto o homem que chegou mais perto de esgotar os recursos do romance. Ficção era o lugar habitado por Joyce ao escrever Ulysses, mas, como provam os anotadores do livro, boa parte da mobília era factual e veio de Dublin.
Nova York
Joseph Mitchell nasceu no começo do século 20 na Carolina do Norte. A família esperava que se dedicasse à terra, mas ele preferiu outras formas de cultura. Disposto a ganhar a vida como jornalista, com pouco mais de 20 anos foi aonde todo mundo ia (e ainda vai) dentro dos Estados Unidos quando almeja trabalhar em algum dos principais jornais e revistas do mundo: Nova York.
Desembarcar na cidade o transformaria para sempre.
Joyce conseguiu povoar Ulysses de vozes sem necessariamente dizer quem fala o quê, mas usando artifícios para que essas vozes sejam reconhecidas. Não basta criar frases que façam sentido, é preciso criá-las de forma que elas soem como devem soar quando ditas por um determinado personagem Stephen Dedalus com suas elucubrações religiosas, Leopold Bloom com suas singelezas.
Alguém
No caso do livro de Mitchell, Joe Gould não é fictício, é alguém que anda por aí e fala de um jeito próprio. A certa altura de O Segredo de Joe Gould, Mitchell narra a conversa que teve com o homem do título quando disse a ele que pensava em desistir do perfil, dadas às complicações que envolviam a tal História Oral (Gould passou meses enrolando Mitchell sem mostrar nenhum material decente relacionado ao livro em que dizia estar trabalhando).
"Desculpe, senhor Gould, mas acho melhor desistir de tudo", disse Mitchell, na tradução de Hildegard Feist. Ao que Gould respondeu:
"Ah, não! Sabe, eu tenho uma memória excepcional. Já me disseram muitas vezes que provavelmente eu tenho o que os psicólogos chamam de memória total. Já perdi capítulos inteiros da História Oral e os reconstituí completamente de memória. Uma vez perdi um e o reconstituí e depois o achei e constatei que havia reescrito muitas páginas praticamente palavra por palavra. Se você me encontrar no Goodys hoje à noite, vou recitar alguns capítulos para você. Vou recitar dezenas de capítulos. Se você tiver paciência de ouvir, recitarei centenas. Assim você terá uma ideia da parte oral da História Oral tão boa quanto se a lesse. Considerando a minha caligrafia, você pode até ter uma ideia melhor."
Dá para ouvir a fala acelerada de Gould, como um vendedor de feira que berra sem querer dar tempo para o cliente pensar. Foi mais ou menos desse jeito que o ator britânico Ian Holm, um shakespeariano notório, interpretou Joe Gould na única adaptação para o cinema de um livro de Joseph Mitchell. Baixinho e atabalhoado, no filme ele fala como uma metralhadora e nem sempre faz sentido. É paradoxalmente serelepe e cansado. Mórbido e engraçado.
No texto que escreveu em 1992 como prefácio para a antologia Up in the Old Hotel, Mitchell cita a vez em que foi ao Barbizon-Plaza Hotel para entrevistar a artista plástica Frida Kahlo, quando era repórter do World-Telegram, em 1933. Kahlo estava casada com Diego Rivera que, naquela época, trabalhava nos murais do Rockefeller Center. Mitchell entrou na suíte do hotel e logo percebeu uma série de desenhos, numa impressão vagabunda, presos com tachinhas nas paredes.
Eram gravuras feitas pelo artista mexicano José Guadalupe Posada que mostravam esqueletos em situações cotidianas: "Um homem-esqueleto ajoelhado enquanto canta uma canção de amor para uma mulher-esqueleto, um homem-esqueleto entrando num confessionário, esqueletos em um casamento, esqueletos em um funeral, esqueletos fazendo discursos, cavalheiros-esqueletos de cartola, damas-esqueletos com boinas estilosas".
O jornalista se surpreendeu porque todas as gravuras eram cômicas, "até a mais mórbida delas". Ele passou a ser assombrado pelos esqueletos e até o fim da vida perseguiu Posada e um tipo de humor com elementos trágicos. Algo que aparece na obra de Mitchell como um tom ao mesmo tempo doce e amargo. Bittersweet.
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