Guilhermina Guinle no papel da socialite Alice, em "Paraíso Tropical"| Foto: Reprodução www.globo.com/paraisotropical

De mãe para filha

A arte de escrever sobre os ovos não difere muito da escrita no papel – mesmo considerando a superfície oval e lisa, a pena da caneta que precisa ser constantemente aquecida na vela e encostada na cera que cobrirá os desenhos feitos sobre o ovo. É como se fosse um caderno de caligrafia circular. Quanto maior a prática, mais bonita a letra, que na pêssanka cede lugar a uma simbologia complexa, em que flores representam o amor, galos a fertilidade e assim por diante.

Eu aprendi pequena, com a minha mãe Lidia, que foi uma das artesãs citadas no livro do Eduardo Sgarnzela, e desde aquela época associei a pêssanka aos cheiros da Páscoa: a cêra de abelha derretida, que serve para cobrir os desenhos sobre a casca de ovo, o pão assado, o verniz, a maçã mais bonita escolhida para ser colocada na cesta que será abençoada. Podia até faltar chocolate, mas não pêssankas, afinal, era preciso renovar os votos de vida longa e boa saúde às avós, todos devidamente registrados na superfície do ovo.

A técnica é simples, mas encantadora sempre: primeiro o ovo branco é trabalhado com a cêra, depois imerso em nas tintas amarela e mais tarde na vermelha – e tudo o que foi coberto com a cêra fica impermeabilizado e mantém a cor depois que o isolante é retirado. Depois de ser imerso em tinta preta, o ovo é só o escuro da noite que, aos poucos, com a ajuda da luz da vela, vai se ilumninando e revelando os desenhos mágicos.

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O termo pêssanka vem do verbo ucraniano pessate, que significa escrever. Assim, durante diversas gerações, desde a era pag㠖 o registro da primeira pêssanka encontrada é de 1.300 a.C – milhares de pessoas foram "escrevendo" nos ovos símbolos mágicos e seus desejos de boa sorte para quem recebesse a oferenda. Ela não é um talismã simples, desses que você pendura no pescoço ou coloca num lugar de destaque da casa e espera que resolva sua vida. Entre os ucranianos, são comuns histórias sobre pêssankas – desde que mantidas a clara e a gema – que estouraram numa fase conturbada da família. Melhor assim, diriam os antigos, pois o ovo absorveu as energias que poderiam desequilibrar o ambiente.

Foi atrás desse objeto de arte com jeito de amuleto que resolveu ir o jornalista Eduardo Sganzerla. Não para falar da pêssanka e seus mistérios – preferiu deixar essa tarefa para algum "pessankeiro" que resolva estudar e escrever sobre o assunto –, mas para olhar e falar sobre quem mantém essa arte aqui mesmo, no Paraná. O resultado da pesquisa foi o livro Pêssanka – A Arte Ucraniana de Decorar Ovos no Brasil (ed. Esplendor), lançado na última sexta-feira em duas versões (português e inglês) e que estará à venda nas livrarias locais e em lojas do exterior – para mostrar aos ucranianos de outras paragens que aqui também se faz pêssankas das boas.

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Havia, segundo Sganzerla, uma história não muito clara, sem bibliografia específica e residente no relato e na experiência de filhos e netos de ucranianos que vieram para cá e, de certa forma, defenderam essa arte, em um tempo em que na pátria mãe não se podia pintar, por causa do regime comunista. "Nos anos 90, a pêssanka começou a ressurgir na Ucrânia. Os russos procuraram acabar de todas as formas com essa arte, por sua ligação com a igreja (depois do cristianismo, símbolos cristãos foram incorporados à pêssanka). Mas eles, curiosamente, não se importavam com o artesanato bordado. Mesmo assim, nunca deixamos de pintar, nesse período", diz Oksana Nakonetchna, artesã de Lviv, na Ucrânia, que Sganzerla conheceu durante sua visita ao país, em julho deste ano. "Lá pude ver os ovos pintados com as peculiaridades de cada região. Mas, ainda assim, é difícil encontrar pêssankas nas ruas como acontece no Brasil."

Por aqui, o autor buscou artesãos ligados a Associação de Artesãos de Pêssankas Ucranianas do Paraná, professores da técnica e alguns representantes da arte também em cidades do interior, como Prudentópolis, formada em sua maioria por descendentes de ucranianos. Nesta produção, o jornalista comenta ter percebido o que os próprios artesãos disseram – o traço e a qualidade pictória do trabalho são capazes de identificar o autor. Não foram muitos, no entanto, a incorporar símbolos locais. "Percebo que aqui, as pessoas projetam muito do seu interior no ovo pintado, o que permite que cada um exerça o seu estilo, sua espiritualidade e a propagação da sua cultura." Essas características permanecem mesmo quando a pêssanka vira negócio: "Os artesãos com que eu conversei têm uma produção constante e muitos deles tocam a vida pintando as pêssankas. E, por mais que essa produção seja sistemática, profissional, o aspecto artesanal é mantido e valorizado", diz.

Com base nos estudos do antropólogo Paulo Guérios, bisneto de ucranianos, que levantou a saga da sua família no Brasil, Sganzerla explica que a pintura de pêssankas está localizada num substrato de âmbito cultural e não tão fortemente vinculado à história da imigração ucraniana no Brasil. "Ou seja, não foram todos que mantiveram o costume de pintar as pêssankas, mas pessoas que tinham a preocupação de guardar suas raízes."