Há 35 anos a Mostra Internacional de Cinema traz a São Paulo o que parece faltar e muito ao circuito exibidor brasileiro: variedade e, em certa medida, qualidade. Basta uma semana correndo de uma sala de exibição a outra durante o evento paulista, para percebermos que é imenso o abismo entre o que é produzido no mundo e o que chega ao nosso circuito comercial. Enquanto produções hollywoodianas, muitas delas descartáveis, ocupam boa parte das telas do país, milhares de filmes realizados ao redor do planeta ficam ausentes do nosso imaginário, como se não existissem.
Na era digital, tempos nos quais "baixar" filmes na internet se tornou hábito, sobretudo entre os mais jovens, essa distância entre os cinéfilos brasileiros e a produção mundial tende a ser reduzida aos poucos. Mas há uma dimensão mais profunda nessa discussão: o paladar por outros tipos de cinema tem de ser construído, estimulado ao longo de anos. E ver os filmes em tela grande, em companhia de outras pessoas, é uma experiência imprescindível nesse processo formativo. Assim como discutir o que é visto.
A reportagem da Gazeta do Povo selecionou, entre mais de 250 filmes em exibição na Mostra, dez filmes que exemplificam a variedade e a riqueza do que se realiza hoje ao redor do mundo. Muitos deles são obras de promissores cineastas estreantes, dispostos a contar boas histórias, a desafiar fronteiras estéticas e a captar o ambiente em que vivem. São produções de baixo orçamento, na maioria longas-metragens independentes, que renovam o cinema mundial. Infelizmente, continuam um tanto fora de nosso alcance.
Ela Não Chora, Ela Canta
Direção de Philippe de Pierpont (Bélgica). Quando o pai sofre um grave acidente e entra em coma, sua filha Laura (Erika Sainte) não quer sair de seu lado no hospital. O que ninguém sabe é que ela guarda um segredo terrível: o pai a violentou durante a infância e agora chegou a hora de ele ouvir tudo que ela tem a dizer, mesmo que esteja inconsciente. Embora tenha namorados, a jovem não consegue manter laços afetivos e até sua relação com a família é distante. A boa atuação de Erika e a direção segura de Pierpont fazem de seu filme de estreia uma boa surpresa.
O Cisne
Direção de Teresa Villaverde (Portugal). Vera (a ótima Beatriz Batarda) é uma cantora de 30 e poucos anos, conhecida e bastante popular, que entra em crise existencial: apesar de rica e famosa, não é feliz. Enquanto o homem por quem é apaixonada a espera no interior de Portugal, ela contrata um jovem órfão, Pablo, para lhe fazer companhia durante uma turnê. O rapaz, que cresceu sob o jugo de um explorador de crianças e sonha encontrar sua mãe biológica, vai ajudar Vera a se compreender melhor. A diretora de Os Mutantes surpreende com uma narrativa emotiva e original.
Angéle e Tony
Direção de Alix Delaporte (França). Esta improvável história de amor entre uma ex-presidiária (Clotilde Hesme) e um pescador solteirão (Grégory Gadebois) é um filme que não tem pressa para cativar o espectador. Angèle precisa de estabilidade para tentar a guarda do filho, que está com os avós paternos da criança, mas ela parece ter vocação para o erro. Até conhecer Tony, um sujeito tosco, fechado, mas que lhe dá uma segunda chance em vários sentidos. Sensível, tocante e com atuações espetaculares, o longa de estreia de Alix Delaporte é um dos pontos altos da Mostra.
A Decisão
Direção de Jinkai Li (China). A Decisão segue à risca a cartilha do neorrealismo ao usar atores não profissionais para contar a história de um casal de jovens estudantes que descobrem estar esperando um bebê. O filme se passa no início dos anos 2000, quando o Estado chinês não apenas proibia a gravidez entre os universitários, como também exigia a realização de abortos, sob a ameaça de expulsão. Muito bem narrada e com boas atuações, Jinkai Li faz em sua estreia uma crítica contundente à intervenção governamental nas liberdades pessoais.
Submarino
Direção de Richar Ayoade (Reino Unido). Candidato a cult, sobretudo entre os jovens, Submarino conta a história de Oliver Tate (Craig Roberts), um adolescente de 15 anos que tem dois objetivos na vida: perder a virgindade antes de seu próximo aniversário e separar sua mãe de um ex-amante, que acaba de ressurgir. Embalada pela linda trilha de Alex Turner, o filme fala do primeiro amor, da sensação de inadequação, e lida de forma delicada com temas mais complicados, como o suicídio. A narrativa é um verdadeiro mergulho na subjetividade do protagonista.
O Futuro
Diração de Miranda July (EUA). Depois do premiadíssimo longa-metragem de estreia, Eu, Você e Todos os Outros, a artista plástica, diretora e atriz Miranda July volta a estrelar seu segundo filme, no papel de Sophie, uma professora de dança frustrada que, ao lado do marido, Jason (David Warshalsky), resolve adotar um gato abandonado. Antes de receber o bichano, o casal repensa a vida: eles cortam a internet e decidem fazer tudo que sempre tiveram desejo de realizar. Mas descobrem que o vazio mora ao lado. Detalhe: o filme é narrado pelo felino.
Vulcão
Direção de Rúnar Rúnarsson (Islândia). As erupções vulcânicas na Islândia servem como metáfora para falar da natureza explosiva do protagonista do belíssimo filme de Rúnarsson. Hessen (o extraordinário Theodór Júliusson) é um ex-pescador e inspetor de escola aposentado que atravessa uma profunda crise quando se vê em casa, sem ocupação. Acaba descontando na esposa, uma mulher carinhosa que sofre com os maus-tratos do marido, e nos filhos. Quando sua companheira sofre um derrame, ele se vê forçado a repensar suas posturas. Um filme dilacerante.
Um Dois Um
Direção de Mania Akbari (Irã). Novo longa-metragem da diretora de 20 Dedos (2005), Um Dois Um conta a história bastante original de Ava (Neda Amiri), uma jovem iraniana, bela e vaidosa, que se envolve em um triângulo amoroso. Prometida a um primo, ela se apaixona por outro homem, mas, na verdade, o que busca é a liberdade de decidir o que deseja fazer da própria vida, algo nem sempre possível em uma sociedade pautada pelos valores e costumes islâmicos. O filme também faz uma crítica à importância excessiva dada por homens e mulheres à beleza feminina.
Respirar
Direção de Karl Markovics (Áustria). Candidato da Áustria ao Oscar de melhor filme estrangeiro, o primeiro longa de Markovics é um dos melhores filmes da Mostra de SP. Conta a tocante história de Roman Kogler (Thomas Schubert), um jovem de 18 anos, que, aos 14, matou um colega de orfanato. Confinado a um educandário, ele está prestes a receber liberdade condicional, mas antes precisa arranjar emprego. Acaba arrumando um serviço no necrotério de Viena. Enquanto isso, tenta reencontrar sua mãe biológica. Contido e poético, o filme é um achado.
O Dedo
Direção de Sergio Deudal (Argentina e México). Nos anos 1980, às vésperas das primeiras eleições municipais desde que os militares chegaram ao poder, um vilarejo no interior da Argentina vive uma história insólita. Quando um líder local é assassinado, seu irmão corta-lhe o dedo e o guarda em um vidro de conservas, jurando vingança. Na medida em que o pleito se aproxima, o dedo ganha vida própria, apontando soluções para impasses e até ajudando na cura de doenças. E acaba candidato a prefeito em uma alegoria sobre os tortuosos caminhos da política latino-americana.
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