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 | Elenize Dezgeniski/Divulgação
| Foto: Elenize Dezgeniski/Divulgação

Um dos legados teatrais do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre, “Entre Quatro Paredes” (1944), analisa o peso da consciência corroendo três almas penadas às voltas com a vida que deixaram para trás antes de chegar ao inferno nada cristão: aquele que desnuda o ser sob o que os outros supostamente pensam sobre ele. O inferno, afinal, é feito o juízo dos outros, tergiversa a percepção de cada um.

Em “aporia em si#”, de Melanie Peter, a indeterminação de espaço, de tempo e de sentimentos interiores circunscreve duas figuras, 1 e 2, à angústia do infinito ou do ocaso. A palavra-chave do título tem origem grega, vem de “áporos” e significa ‘que não tem passagem’, derivando daí outros nexos. Aqui, o pensamento aleatório indica o lugar da assepsia hospitalar ou do túnel pós-morte, ambos dominados, no imaginário comum, pela cor branca.

A peça dirigida por Fany Magalhães no encerramento da 4ª Mostra de Dramaturgia do Sesi apresenta a individualidade embotada pela ação situacional de quem está incumbido de uma missão: remendar o irremediável cobrindo de branco a camada branca ora ruim e que precisa ser corrigida, ou melhor, apagada, assim como ao barulho nela contida.

Passar a tinta sobre o que se ouve e o que se vê é a metáfora da incompletude e da inaptidão dessa dupla temerosa em confundir “o nada geral com o nosso vazio”. Pêndulo capitular da humanidade, basta recapitular a história dos primeiros 15 anos deste século 21.

É dessa antessala, sob o princípio da incerteza e de um frescor metafísico que não se contenta em ser turvo – Melanie abre-se à busca pela precisão da palavra sem contorcionismo – que o texto encontra ponte com a encenação de Fany Magalhães, também ela atriz a contracenar com Adolfo Tartelli.

Assim como ao observador, dizem, compete projetar em mente o que transvê no quadro branco pendurado na parede branca de uma galeria contemporânea – outra cogitação de lugar no leque aberto pela dramaturgia –, Fany sai da moldura para sustentar a fenomenologia do vácuo em outras medidas. Há uma discreta ascensão realista sobre a condição de trabalhador desses dois sujeitos-coveiros-reparadores-espíritos-soltos. Os macacões e capotes cinzas dos figurinos (sabe-se, meio-termo entre o preto e o branco); o chão forrado por folhas de jornais; e o ruído das ruas, manifestações ou vozes radiofônicas confirmam uma janela para o agora.

Note-se em especial a capacidade do coletivo Teatro de Segunda em desdobrar o entendimento e os atritos do texto para os recursos da cenografia (pela equipe), do desenho de luz (por Giuliano Bilek) e da sonoplastia (Rodrigo Enoque). São achados dialógicos que expandiram as imagens do texto na sessão de estreia no Teatro José Maria Santos.

O espectador levado ao fundo do palco visualizava na boca de cena a plateia vazia, no semibreu, bela sugestão da “quarta parede” ali invertida como ponto de fuga inteiriço. A vastidão do infinito aberto, segundo a autora diz numa das poucas indicações. Vale compartilhar outra rubrica em parênteses na qual exprime talento em fornecer aos homens e às mulheres da cena a dor e a delícia do ímã liberdade: “(enquanto faz silêncio talvez seja possível transportar o corpo para outro ponto vago no mapa da cena. Como?)”, atiça e indaga na virada da primeira para a segunda parte da peça, quando 1 e 2 tentam quietude.

Adolfo Tortelli é o estranhamento em pessoa para percorrer os corredores do texto. Barbas e cabelos bastos, nele a arquitetura dramática de Melanie encontra eco corporal e propriedade na fala. Já Fany, na contracena, atua com menos intensidade nas gradações exigidas em todos os quadrantes pela própria marcação de encenadora. Em ambos a pretensão de uma gestualidade à maneira da mímica não nos convence. As paredes são mais visíveis quanto menos a cena insiste do contrário.

Na sequência da Mostra de Dramaturgia, o Teatro de Segunda emenda curta temporada de aporia em si# em espaço diametralmente oposto – uma espécie de garagem/galpão rente a uma via pública, convocando seus artistas à reinvenção permanente como o fazem cada 1 e 2 que pisam aquele corredor.

Valmir Santos é jornalista, crítico e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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