No terceiro ato de “Nossa Cidade”, de Thornton Wilder (1897-1975), o leitor ou espectador encontra uma passagem memorável. Após iluminar o cotidiano dos habitantes daquele interior profundo dos EUA, apegados à moral e à religiosidade na virada do século 19 para o 20, a narrativa é deslocada para o cemitério. Surge então o território balizador da humanidade com que o escritor impregna a história, ponderando morte e vida sem dissimulação. Ao falar sobre os mortos, o personagem Diretor de Cena especula:“Não estarão eles esperando que essa parte eterna que neles existe se revele?”. Pois “Perpétuo”, a primeira peça de Daniele Cristyne, parece ter brotado dessa árvore wilderiana.
Encenada por Darlei Fernandes (Companhia Subjétil) na abertura da 4ª Mostra de Dramaturgia Sesi – Teatro Guaíra, ocorrida no Teatro José Maria Santos, na noite de terça-feira (1º), a peça salta o muro da invisibilidade temática ao abordar o fim da existência que nos toca, mais dia ou menos dia. O recorte surpreende pela juventude e coragem da autora.
O modo minimalista de contar essa história é estruturado por duas vozes femininas para as quais, aos poucos, o texto acena com identidades possíveis sem jamais delinear uma personagem ou outra – no máximo, figuras. São falas de situação e menos de ação, como se estivessem pensando alto em cruzamentos atemporais. Elas coabitam um lugar intuído como aquele onde os corpos das pessoas são enterrados e, anos depois, exumados. O cemitério é o lugar da dor e da (in)quietude para quem está em busca de memórias e sentidos, sobretudo quando precipitados por um acontecimento trágico.
A dramaturgia de fragmentos, ruminações, reiterações e aproximações de Daniele é sustentada pela convicção da linguagem. Afloram imagens verbais como a de que as feridas na cabeça são ideias a coçar. Ou quando se ouve que cremar é a mesma coisa que queimar, isso gera um ruído bom na cabeça do público colocado no lugar do outro, o cadáver. O texto expõe a realidade inexorável de que ao pó retornaremos. E não facilita a emotividade que normalmente cerca a finitude, convidando o público a raciocinar sobre a condição humana em perspectiva ampliada, mais complexa do que manda o tabu.
O mesmo grau de consciência pela obsessão formal, porém, represa a natureza lírica que a dramaturga deixa entrever em muitos momentos dessa primeira viagem. Resta infinita a liberdade para jogar neste diagrama de rigores que é “Perpétuo”. A arte pode torná-lo nem tão imutável assim. Afinal, como matar a sede de sentimentos dessas almas autônomas?
A encenação de Darlei Fernandes imprime mais contrastes à necrópole. O palco italiano é transfigurado como instalação. A cenografia de Marina Moraes pendura sacos de estopa à esquerda, aludindo aos ossos recolhidos de exumação. No chão, covas e lápides são desenhadas por meio dos confetes de carnaval, milhares de papeizinhos coloridos que viram um tapete único ao longo da apresentação, dissolvendo fronteiras outras.
Uma intervenção de Darlei na dramaturgia, como declarou em debate posterior à sessão, sempre em criação colaborativa com a autora, introduziu a figura masculina tal qual narrador. Ele também assume função de contrarregra. Em seu figurino social normativo, o ator João Graff pontua os solilóquios das duas mulheres, às vezes em ações propriamente ditas, manejando seus corpos.
A estreia revelou que as atuações de Andreia Porto e Carol Damião ainda não empregam carnalidade à voz e ao corpo das mulheres autocentradas, intracranianas. As expressividades ficam aquém do potencial presumido em suas presenças. As intérpretes transmitem a sensação de que estão acuadas, quebrando a relação direta com o público. As figuras da peça são hesitantes, mas aquelas de carne e osso têm margem para reforçar as seguranças técnica e poética para que a audiência não note uma coisa nem outra. E nesse espetáculo em que a composição atmosférica é imprescindível – cenas de tons francamente subjetivos, etéreos e, notável, de pouco peso ao sagrado, a despeito da morte –, outro elemento-chave é a criação da sonoplastia por Jo Mistinguett, base das paisagens imagináveis.
Valmir Santos é jornalista, crítico e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena