Giovana Gregório faz de “Meriene” uma dramaturgia em que a leitura, primeiro, e a escuta e a experiência cênica, depois, transportam o interlocutor ao espaço da fantasia com fundos falsos para a realidade. Ela desgarra do caráter expositivo de uma história com encadeamentos e adere, de modo incondicional, a uma narrativa intencionalmente errática, de traços atmosféricos, feito desenho riscado no céu pela dança das nuvens mutantes, quando assim acreditam os olhos livres.
Prevalecem camadas de “eus líricos” e de uma penca de seres, sensações e figuras de extração mágica, de feições animais ou humanas, advindas do que nos leva a inferir uma voz da criança do título em meio a outras tantas, como a de um possível narrador onisciente que chega a flertar ironicamente com os procedimentos de um teatro sustentado por “papéis”. O texto dessacraliza o diálogo direto, a sustentação de personagens coadjuvantes ou protagonistas. Uma escrita de flertes com a prosa de Hilda Hilst, pelo torvelinho, ou com a poesia das coisas e dos bichos em Manoel de Barros, pelas inversões.
Desafiado a esse admirável mundo do poema dramático singrado pelo descondicionamento, o diretor Paulo Alexandre atirou-se de peito aberto às reinações da autora que revestiu as palavras digitadas no computador com ilustrações alusivas ou desviantes da gramática expositiva que teceu, repleta de neologismos e alegorias.
Alexandre tenta suspender a ideia de representatividade que o público normalmente espera. A começar pela transposição da plateia para o palco, onde o espectador é colocado no mesmo nível dos atuadores: Alexandra Delgado, Jéssika Oliveira e o próprio diretor. Em semiarena cercada por homens e mulheres sentados em cadeiras ou ao rés do tablado, o trio ecoa a oralidade musical e sibilante que Giovana Gregório vaza na ficção que coloca a história de uma garota na roda, suas lembranças de afetos, com destaque para a sublimação pela avó, ou de enfrentamentos da crueldade do mundo como às vezes ele é, no caso do abuso.
Para arriscar-se nesse patamar de composição cênica livre, que assume viés emocional ao mesmo tempo em que deseja levantar pensamentos que vão e vêm (ainda que propositalmente soltos), seria imprescindível uma atuação que embutisse o oposto: estratégia tecnicamente muito bem apurada a fim de garantir o sobrevoo ambicionado. Alexandra, Jéssika e Alexandre refletem limitações nos tempos lúdicos e telúricos. Têm dificuldade em acompanhar o fluxo do inconsciente textual dito e espichado na dimensão da palavra. Corpo e voz bambeiam quando a malemolência ainda não é práxis. Seria injusto não anotar que em alguns momentos, sim, expressam mais desenvoltura ou naturalidade neste desprendimento.
As salvaguardas da peça, por outro lado, são garantidas pelos seus mesmos atores entregues ao projeto: a música ao vivo, no dedilhar das cordas pelo próprio Paulo Alexandre, sonoridade conarradora nos climas, e a costura que ele e as duas parceiras promovem na dilatação do espaço cênico, transitando pelos espectadores nos sentidos frente e verso.
Exemplo de sintaxe de linguagens ocorre na passagem em que o uso combinado de adereços e de um fio de aço emaranhado para cair lentamente do teto e “vestir” uma das atrizes de ave, um faisão, ou a menina-título “à faisana”. E a escrita para a cena desperta associações imagéticas.
Ao acompanhar “Meriene”, o público teve a chance de verificar o quanto uma experiência criativa de braços dados com o espontaneísmo e a construção de presenças requer partitura rigorosamente aplicada, sem denotar esforço, o que aqui foi parcialmente celebrado. Os artistas possuem a bagagem de percurso e comunicam intuição sutil para aprofundar os domínios formais de uma estética radicada no aspecto relacional. Disponibilidade em cena não lhes falta.
Valmir Santos é jornalista, crítico e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena
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