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 | Elenize Dezgeniski/Divulgação
| Foto: Elenize Dezgeniski/Divulgação

Nome de referência da dramaturgia brasileira, a partir da década de 1980, o paulista Luís Alberto de Abreu conjuga o moto-contínuo trabalho e pesquisa sob admirável ecletismo de gênero. É dele uma investigação seminal em torno da Comédia Popular Brasileira com parceiros da Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes, que deu fruto a 11 textos, entre eles “Sacra Folia”. Pertence à lavra do mesmo autor os dramas “O Livro de Jô”, junto ao Teatro da Vertigem; “Recusa”, com a Companhia Teatro Balagan; “Auto do Circo”, com a Companhia Estável; e “Nomes do Pai”, com a Companhia da Memória, esta uma peça em que chega a abdicar da palavra ao roteirizar ações baseadas na prosa de Franz Kafka. Para não dizer das peripécias molierescas escritas para o Grupo Galpão.

Abreu é chamado aqui para ancorar a importância do trânsito no gesto artístico. Lembrança motivada pela recepção ao espetáculo “Vende-se uma Geladeira Azul”, texto de Rafael Cal e direção de Pedro Nercessian, comédia gestada no Núcleo de Dramaturgia do Sesi RJ e integrada à programação desta 4ª Mostra de Dramaturgia do Sesi PR – Teatro Guaíra. As searas dramáticas, sobretudo as variações pós-dramáticas, costumam ser visitadas com recorrência nos projetos afins que envolvem jovens criadores, inclusive na praça de São Paulo. O texto de Cal nos convence de que faz bem não fixar-se em um único escaninho quando o que está em meta é experimentar, pisar o desconhecido.

Na trama de mote prosaico – mobilizados por herança, familiares olham no retrovisor e ajustam alguns ponteiros existenciais –, Cal reflete sutilmente sobre os valores que andam consumindo a qualidade das interrelações pessoais. Pior: consanguíneas, sob o mesmo teto.

O enredo transcorre em dois movimentos, memória e presente. Na retrospecção, três irmãos com idades entre 6 e 8 anos gravitam o refrigerador da casa da avó, ávidos por guloseimas. Brincam, brigam e tateiam descobertas que distinguem o mundo real do imaginário, como convém à infância. Saltando para a fase adulta, agora eles estão no limiar da terceira década, quando ficam mais óbvias as chatices e virtudes mútuas. As idiossincrasias, alienações e chantagens emocionais gritam no encontro em que conhecem o testamento da avó recém-falecida. Ela doou tudo que tinha a casas de repouso e herdou ao trio apenas aquele eletrodoméstico do título.

Como avançar a narrativa a partir desse quadro implausível? O texto esculpe os perfis, cada qual em seu grau de egoísmo, de carência, de estragos por mimos. A resolução sobre o que fazer com a velha geladeira azul, como o título entrega e se consuma por meio de leilão virtual, vai removendo as máscaras e as rusgas, escancarando pragmatismo no desapego aos sonhos e adesão a tudo que é descartável. Apesar de o caçula conferir alguma resistência aos desencantos.

A direção de Pedro Nercessian segue a cadência do texto ao não explicitar a mudança de tempo entre o antes e o agora. Vide os figurinos e atuações dispensadas da caracterização de voz e trejeitos infantis. Aposta-se na inteligência do espectador para navegar por gradações de contexto.

O desenho de luz de Paulo César Medeiros insinua-se como elemento indicativo dos instantes que representariam os primeiros anos daquelas vidas, feito sombra de gente miúda projetada (em nossa percepção), mas o código logo se esvaiu na sessão que acompanhamos. Tampouco vingou tecnicamente a sonoridade incidental amplificada por meio de microfones, talvez com o intento de capturar vozes “fantasmagóricas” do passado.

A dissonância é refletida ainda nas atuações. Prevalece um naturalismo de ênfase televisiva no trio de atores: Juliana Bebé (como Anna), Felipe Haiut (João) e Nercessian (Bernardo). Para uma dramaturgia e uma encenação que preconizam algum grau de inventividade, tal linha de desempenho não corresponde. Quem sabe, estratégia decorrida do coloquialismo dos diálogos e das situações, à maneira da sala de estar enquadrada no inconsciente do telespectador brasileiro. Distinguimos o travo e o humor nas entrelinhas da história desses irmãos, enquanto o modo como ela é contada rivaliza ao desequilibrar-se numa superfície de fato escorregadia.

Valmir Santos é jornalista, crítico e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena

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