Cena de “Florescerro”.| Foto: Elenize Dezgeniski/Divulgação

Escrever certo por linhas tortas, dizem, é premissa divina. Enquanto inscrição de cena, o ato da direção teatral também arranja seus próprios desvios, como se nota em “Florescerro – Um Erro Que Vive”, texto e espetáculo de fisionomias metafísicas com o qual o Grupo de Pesquisa Ajna, de Maringá, caminha há um ano. É notório o tensionamento entre dramaturgia e encenação, rendendo bons achados e outros nem tanto.

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O espectador confronta um permanente estado de incertezas em torno do cosmo ou de um grão de areia, segundo os desígnios de obra aberta no diálogo que envolve ou aparta figuras “A” e “B”. A dramaturgia propõe um sistema que lembra binômios como mestre-discípulo, criador-criatura, razão-derrisão, pai-filho, luz-sombra. Maniqueísmo? Não. O que está em jogo é a manipulação. Em xeque, a minha verdade, a sua verdade e a verdade do outro.

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Afinal, em tempos brutais, qual a relevância da arte da bailarina, do trompetista e do poeta? O jugo e o rebatimento da retórica dessas vozes são capitalizados pela direção como manufatura cênica em si.

 

Na materialização da palavra esculpida sob o signo do enigma poético, por Gustavo Hermersdorff, o diretor Lucas Fiorindo turva o trabalho do espectador ao menosprezar o princípio da clareza. Longe de esperar por respostas, a expectativa de quem assistiu à obra na Mostra de Dramaturgia recaiu sobre a clareza na formulação das perguntas que suscitava.

Em boa parte da apresentação as palavras-pistas ou palavras-despistes do autor foram despotencializadas da produção de imagens porque simplesmente inauditas. Essa falha assumida é captada exatamente como falha, um vão. Dissolver a palavra falada – diferentemente de samplear, por exemplo – nos parece um contrassenso diante da massa verbal lacunar que pressupõe uma escuta atenciosa do espectador. Sem esses meandros, este se vê muitas vezes à deriva, na acepção negativa.

Para uma construção textual dominantemente abstracionista, soa anárquico, e novamente na acepção negativa, convergir para o palco ambições aparentemente antípodas: a da dramaturgia talhada na pedra da concisão fabular e a da ritualização de instâncias primais. A ousadia discrepa e torna a criação paradoxal.

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Fiorindo se permite apropriar do texto de maneira vertical, disposto a penetrar intersubjetividades, abrir fendas, plantar sementes. Não bastasse “decifrar” os códigos de Hermersdorff , o diretor elabora uma escrita de palco de vocabulário transgressor nas tentativas de instaurar silêncios, desprezar evangelhos, subverter tradições, rupturas, invocar energias. E nesse baião de dois (diretor e dramaturgo) que não vira triângulo, o público não se sente abraçado (para usar um gesto caro no desabafo de “A”: “Estamos todos presos do lado de fora de um abraço”).

 

É dessa mesma margem que o público, ainda assim, frui algumas soluções cênicas que reafirmam a disposição da equipe para o risco. O cenário realista traçado pela arquiteta Ana Paula Siste circunscreve uma faixa de areia e blocos de concreto, um terreno irregular e movediço. O ambiente é banhado pela penumbra, com tingimentos de luz rarefeita.

A capacidade de o espetáculo sintetizar o pensamento dramatúrgico se dá em momentos como o do início, quando “B” surge ao fundo do palco empunhando uma tocha. Afinal, é ele quem se quer crer trazendo a luz para “A”, sujeito que estaria preso à ignorância ao “enxergar” a alegria, melhor, o sorriso de um cão correndo atrás de uma carroça, provavelmente a de seu dono. A miséria tem lá sua gênese no mau-caratismo.

Outra cena bem desenhada é quando “B” dá banho em “A” numa bacia estilizada com rusticidade medieval. Uma atitude maternal em meio à virulência nos modos de apreender o mundo – e o outro. Ou, ainda, a complementação circular do ser que rompe a “placenta” cenográfica para vir ao mundo, no começo, e a ela retorna ao final.

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Fica patente a inspiração polimorfa do diretor Lucas Fiorindo, essencial à função que começa a exercer. Ele ainda atua (em substituição) na pele de “A”, com acanhamento nas expressões física e vocal. Já o ator Vinícius Huggy, em seus primeiros passos no ofício, demonstra habilidade nata na modulação de voz e recursos corporais para embarcar nas transcendências de “Florescerro”, corruptela colada ao título original “Um Erro Que Vive” (2010).

Vindo de uma cidade do interior paranaense de apenas 68 anos, portanto jovem, bem planejada e limpa, uma Maringá de tradição incipiente nas artes cênicas, instiga saber que o Ajna (nome derivado do sânscrito que designa o chacra do comando relacionado a intelecto, memória e sistema nervoso central) reivindica uma teatralidade francamente ambiciosa em sua pesquisa. O desafio do grupo é colocar-se no lugar do público (travessia?) sem incorrer na condescendência que, já vimos, não faz parte de sua postura artística.

Valmir Santos é jornalista, crítico e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena.