“Tive a sorte de inventar meus próprios brinquedos.” Numa época em que a garotada praticamente nasce com tablets e smartphones na mão, pode parecer estranho ouvir uma afirmação dessas, especialmente hoje, no Dia das Crianças. Pois foi assim que Fernando Augusto Gonçalves, diretor do Museu do Mamulengo, em Olinda, Pernambuco, passou a sua infância. De presente, nada de carrinhos automáticos. Gonçalves e seus irmãos ganharam uma caixa de ferramentas para construir o que quisessem: “Era outra época”, suspira, saudoso. De lá pra cá, foi uma vida inteira dedicando mente e coração a essa arte. “Acho que fiz desse ofício a razão da minha existência.”
Técnica não substitui emoção
Sob diferentes denominações – fantoche, marionete, mamulengo (veja nas fotos desta página) –, o teatro de bonecos é uma arte milenar, com origens na Grécia
Leia a matéria completaEm março deste ano, o Teatro de Bonecos Popular do Nordeste foi tombado como Patrimônio Imaterial Brasileiro, por unanimidade de votos, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Valmor Beltrame, doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do curso de Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) avalia esse título como um feito histórico no país: “Ele eleva o Brasil ao patamar de manifestações já reconhecidas pela Unesco em países como a Itália, que tem o Pupi, o teatro de marionete siciliano”.
Glossário
Fantoche: boneco com luva, movimentado com os dedos
Marionete: bonecos suspensos por fios presos a uma cruzeta
Mamulengo: é uma manifestação artística que mistura variadas técnicas de confecção e animação, inclusive fantoches e bonecos de vara. É uma arte espontânea do povo, portanto, o que conta é a criatividade dos artistas
Curitiba também marca presença nessa área. Evaldo Barros, ator-bonequeiro formado pela Companhia Kobachuk, diretor de teatro e atual vice-presidente da Associação Paranaense de Teatro de Bonecos (APTB), garante que a capital paranaense não deixa nada a desejar para outros polos artísticos do país: “São mais de 30 companhias de diferentes tipos. É uma cidade que tem efervescência em torno do teatro de animação”.
Em seu espetáculo “Viva Vivaldi”, Barros apresenta sonetos que o compositor italiano Antonio Lucio Vivaldi escreveu sobre as quatro estações do ano. “Queremos levar música clássica para o público e fazê-lo conhecer essa parte pouco divulgada dos sonetos”, diz o bonequeiro. Ele não gosta muito de definir faixas etárias para suas produções: “Costumo dizer que o teatro de animação é destinado a crianças de 3 a 93 anos. Se o espectador não abrir o canal que o resgata para a infância, dificilmente vai conseguir se envolver com a peça”.
Para assistir
Teatro do Piá (Praça Garibaldi, 7, São Francisco). Dia 25 de outubro às 11 horas. R$ 40 (inteira) R$ 20 (meia). Classificação indicativa: livre.
Para o professor Beltrame, é exatamente esse “canal de resgate da infância” o que faz com que as pessoas associem mais frequentemente essa arte ao público infantil. Mas ele adverte que não é bem assim: “Na sua origem, ele nunca foi destinado à criança”, diz Marcos Ribas, fundador da companhia Contadores de História, de Paraty, no Rio de Janeiro. Ele concorda com Beltrame: “Essa relação entre teatro de bonecos e público infantil não procede. O exemplo mais claro disso é o teatro de mamulengos de Olinda”. O teatro de mamulengos – uma espécie de fantoche articulado – é uma arte praticada por artistas do povo. Os atores são bonecos que falam, dançam, discutem e, na maioria das vezes, morrem. Transbordam irreverência, linguagem popular rasgada (às vezes, até com palavrões) e escracho em seus roteiros, muitas vezes improvisado ali mesmo. “Algumas pessoas entram aqui achando que vão assistir a um ‘teatrinho’. Não é um conto de fadas, muito menos teatro infantil”, explica Fernando Gonçalves, diretor do Museu do Mamulengo.
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