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Três longas brasileiros e dois latinos já foram exibidos nas mostras competitivas do 36º Festival de Gramado. Os dois mais interessantes são filmes de perfil bastante diferenciado, o de Murilo Salles, "Nome Próprio", exibido na primeira noite, e o de Tabajara Ruas, "Netto e o Domador de Cavalos", na terceira. Ambos diferem radicalmente até na forma de utilizar (ou exibir) a tensão criativa entre as novas tecnologias, leia-se o digital, e as tradicionais, a película, que está no conceito da seleção de títulos deste evento.

Murilo Salles discute o desamparo feminino por meio da viagem ao interior de uma personagem que remete ao universo dos blogs e da internet. Nada mais ‘atual’. Tabajara Ruas retoma o personagem do General Netto de "Netto Perde Sua Alma" e, na verdade, recua ainda mais no passado, para mostrá-lo antes de 1835, e da "Guerra dos Farrapos", quando os gaúchos tentaram criar uma República, separando-se do escravocrata império dos Braganças.

"Netto e o Domador de Cavalos", com os defeitos que possa ter, possui belas qualidades, mas é o tipo do filme destinado a provocar polêmica, ainda mais no contexto de um festival que celebra nomes que restaram da briga pela afirmação das novas cinematografias, nos anos 60, tipo o brasileiro Júlio Bressane e o outro Julio, o cubano García Espinoza.

No universo de referências cruzadas que virou o cinema da (pós)modernidade, as de Tabajara são autores que talvez sejam ‘clássicos’ demais para provocar ressonâncias no imaginário do público, e da própria crítica, atuais. Uma janela se abre para que o General Netto seja visto ao fundo, chegando com um par de cavalos. A cena remete imediatamente à abertura de "Rastros de Ódio", de John Ford, mas quem se interessa por isso? No interior da casa do barão, as meninas correm abrindo as portas e pode ser que alguém se lembre do passeio de Alain Delon e Claudia Cardinale pela ala semi-abandonada do palácio do príncipe Salinas em "O Leopardo", de Luchino Visconti.

Referências são coisas muito pessoais, de parte de diretores ou mesmo de espectadores, de quem as emula (ou absorve). "Netto e o Domador de Cavalos" cruza a história do revolucionário interpretado por Werner Schünemann com a lenda do "Negrinho do Pastoreio", uma das mais populares do folclore gaúcho. Muita gente recebeu o filme em Gramado como um épico, mas não é. Sua história, mais drama do que aventura, atravessa o épico ou o precede, de forma mais intimista, e só no final "Netto e o Domador de Cavalos" (Tarcísio Filho) estão prontos para a batalha e aí é o começo de "Netto Perde Sua Alma".

O filme trata de injustiça, de desigualdade social e racial, aponta para uma utopia revolucionária. O barão e seu filho sacrificam o Negrinho como exemplo de sua autoridade, mas os negros rio-grandenses já estão se emancipando, primeiro como quilombolas, integrantes de quilombos, e depois como lanceiros do Exército do General Netto. E todo o relato é permeado por cantos, danças, pelo ator de ‘carnear’ o gado ou aplicar a (in)justiça da classe dominante, numa descrição ‘cotidiana’ como aquela que permeia os westerns de Ford, que também tratam da criação e do estabelecimento de comunidades.

Pode ser que tudo isso seja clássico demais, mas também é uma resistência à globalização. Levado para o tronco, o barão grita que dentro de 100 anos a ordem terá voltado a ser a dele, mas o domador de cavalos, o índio Torres, responde que dentro de 100 anos talvez. Agora, no tempo do filme, é diferente.

MARIONETES - Não é, evidentemente, um filme para todos os gostos, como não foi o latino "Mindelo Trás d’Horizonte", de Alexis Tsatas, de Cabo Verde. O filme propõe, sem entrevistas nem diálogos, uma viagem pela riqueza cultural e humana da pequena ilha do Atlântico colonizada pelos portugueses. Há algo do filme cubano Suíte Havana, no conceito, mas Mindelo propõe outra coisa. Não é um mero roteiro turístico para passar no canal National Geographic, como alguns críticos, apressadamente, pensaram.

Na utilização da música, do trabalho e também de representações de teatros de marionetes e textos recitados por atores, o filme se indaga sobre o que é, afinal, a identidade do cabo-verdiano. O diretor, de origem grega, disse que Cabo Verde é um país pobre, no qual o cinema é um luxo. Produzem-se pouquíssimos filmes por lá. Aliás, quase não se produzem filmes. A seleção para a mostra competitiva de Gramado, ele acrescentou, é um estímulo para toda a equipe. Poderão surgir programas melhores na competição latina, mas Mindelo já foi um passo à frente do argentino Por Sus Próprios Ojos, o primeiro concorrente, exibido na segunda-feira à noite.

13/08/2008 14:04 - NG/VA/CINEMA/FSTIVAL DE GRAMADO

Um clássico enfrenta a modernidade

Por Luiz Carlos Merten, enviado especial

Gramado, RS, 13 (AE) - Três longas brasileiros e dois latinos já foram exibidos nas mostras competitivas do 36º Festival de Gramado. Os dois mais interessantes são filmes de perfil bastante diferenciado, o de Murilo Salles, "Nome Próprio", exibido na primeira noite, e o de Tabajara Ruas, "Netto e o Domador de Cavalos", na terceira. Ambos diferem radicalmente até na forma de utilizar (ou exibir) a tensão criativa entre as novas tecnologias, leia-se o digital, e as tradicionais, a película, que está no conceito da seleção de títulos deste evento.

Murilo Salles discute o desamparo feminino por meio da viagem ao interior de uma personagem que remete ao universo dos blogs e da internet. Nada mais ‘atual’. Tabajara Ruas retoma o personagem do General Netto de "Netto Perde Sua Alma" e, na verdade, recua ainda mais no passado, para mostrá-lo antes de 1835, e da "Guerra dos Farrapos", quando os gaúchos tentaram criar uma República, separando-se do escravocrata império dos Braganças.

"Netto e o Domador de Cavalos", com os defeitos que possa ter, possui belas qualidades, mas é o tipo do filme destinado a provocar polêmica, ainda mais no contexto de um festival que celebra nomes que restaram da briga pela afirmação das novas cinematografias, nos anos 60, tipo o brasileiro Júlio Bressane e o outro Julio, o cubano García Espinoza.

No universo de referências cruzadas que virou o cinema da (pós)modernidade, as de Tabajara são autores que talvez sejam ‘clássicos’ demais para provocar ressonâncias no imaginário do público, e da própria crítica, atuais. Uma janela se abre para que o General Netto seja visto ao fundo, chegando com um par de cavalos. A cena remete imediatamente à abertura de "Rastros de Ódio", de John Ford, mas quem se interessa por isso? No interior da casa do barão, as meninas correm abrindo as portas e pode ser que alguém se lembre do passeio de Alain Delon e Claudia Cardinale pela ala semi-abandonada do palácio do príncipe Salinas em "O Leopardo", de Luchino Visconti.

Referências são coisas muito pessoais, de parte de diretores ou mesmo de espectadores, de quem as emula (ou absorve). "Netto e o Domador de Cavalos" cruza a história do revolucionário interpretado por Werner Schünemann com a lenda do "Negrinho do Pastoreio", uma das mais populares do folclore gaúcho. Muita gente recebeu o filme em Gramado como um épico, mas não é. Sua história, mais drama do que aventura, atravessa o épico ou o precede, de forma mais intimista, e só no final "Netto e o Domador de Cavalos" (Tarcísio Filho) estão prontos para a batalha e aí é o começo de "Netto Perde Sua Alma".

O filme trata de injustiça, de desigualdade social e racial, aponta para uma utopia revolucionária. O barão e seu filho sacrificam o Negrinho como exemplo de sua autoridade, mas os negros rio-grandenses já estão se emancipando, primeiro como quilombolas, integrantes de quilombos, e depois como lanceiros do Exército do General Netto. E todo o relato é permeado por cantos, danças, pelo ator de ‘carnear’ o gado ou aplicar a (in)justiça da classe dominante, numa descrição ‘cotidiana’ como aquela que permeia os westerns de Ford, que também tratam da criação e do estabelecimento de comunidades.

Pode ser que tudo isso seja clássico demais, mas também é uma resistência à globalização. Levado para o tronco, o barão grita que dentro de 100 anos a ordem terá voltado a ser a dele, mas o domador de cavalos, o índio Torres, responde que dentro de 100 anos talvez. Agora, no tempo do filme, é diferente.

MARIONETES - Não é, evidentemente, um filme para todos os gostos, como não foi o latino "Mindelo Trás d’Horizonte", de Alexis Tsatas, de Cabo Verde. O filme propõe, sem entrevistas nem diálogos, uma viagem pela riqueza cultural e humana da pequena ilha do Atlântico colonizada pelos portugueses. Há algo do filme cubano Suíte Havana, no conceito, mas Mindelo propõe outra coisa. Não é um mero roteiro turístico para passar no canal National Geographic, como alguns críticos, apressadamente, pensaram.

Na utilização da música, do trabalho e também de representações de teatros de marionetes e textos recitados por atores, o filme se indaga sobre o que é, afinal, a identidade do cabo-verdiano. O diretor, de origem grega, disse que Cabo Verde é um país pobre, no qual o cinema é um luxo. Produzem-se pouquíssimos filmes por lá. Aliás, quase não se produzem filmes. A seleção para a mostra competitiva de Gramado, ele acrescentou, é um estímulo para toda a equipe. Poderão surgir programas melhores na competição latina, mas Mindelo já foi um passo à frente do argentino Por Sus Próprios Ojos, o primeiro concorrente, exibido na segunda-feira à noite.

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