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LITERATURA

Terra em transe pela guerra

Companhia das Letras reedita o primeiro romance do escritor moçambicano Mia Couto

Niver | Tiomkim
Niver (Foto: Tiomkim)

A guerra se estende há tanto tempo que é difícil lembrar o que havia antes dela. Nenhum lugar parece seguro, o destino da fuga é "o desejo de partir novamente". Sonhar, nesse cenário, é questão de sobrevivência. É o que mantém vivos os personagens de Terra Sonâmbula, o romance de estréia do escritor Mia Couto. A obra, considerada uma das 12 melhores representantes da literatura africana no século 20, é agora reeditada pela Companhia das Letras no Brasil, 15 anos depois de ter sido escrita.

Perdidos no tempo e no espaço de uma guerra civil – sucessora de uma década de guerra anticolonial – que arrasou Moçambique, país do sudeste africano, entre 1976 e 1992, o velho Tuahir e o menino Muidinga caminham sem rumo certo para escapar dos horrores dos conflitos. Muidinga nada recorda de sua vida antes de encontrar o seu protetor, a quem teima em chamar de tio. Se o esquecimento para o "miúdo" é motivo de tristeza, para o "tio" é bem-vindo apagar da memória as atrocidades vistas e sofridas.

A estrada morta os encaminha a um machimbombo (ônibus) queimado. Os dois enterram os cadáveres carbonizados que ocupavam os bancos e fazem do veículo seu abrigo. O sofrimento e o asco pela morte presente os incomoda, mas não há alternativas melhores em vista. Há apenas um consolo: os cadernos de Kindzu, um homem que encontram morto a tiros nas imediações, portando escritos autobiográficos. As narrativas fantásticas do desconhecido são o descanso e a esperança de que precisavam para seguir.

Mia Couto, exímio contador de histórias, faz de sua obra um elogio às fábulas e a seu poder de encantamento – anestesia para os dramas reais. Sua técnica narrativa é a sobreposição. À superfície, apresenta-nos Tuahir e Muindiga. Abaixo, os relatos em primeira pessoa de Kindzu e, por vezes, sob eles, as lembranças das pessoas que o viajante encontra em sua busca pelos míticos guerreiros naparamas. Diferentes tramas que se revelarão relacionadas.

As leituras dos cadernos fazem as paisagens em torno de Muindinga se alterar, como metáforas do poder da ficção. Nessas e outras passagens, o autor se apropria do realismo fantástico, à maneira dos sul-americanos, para representar a insensatez de uma terra em transe pela guerra, em que uma espécie de "sonhambulismo" acomete as pessoas. Ao mesmo tempo, o mágico surge como elemento das tradicionais crenças africanas, num esforço por reencontrar uma identidade nacional, dissipada nos conflitos.

Kindzu é o personagem imerso nesse universo fantástico que afasta a guerra. O fantasma de seu pai o atormenta quando, ainda garoto, decide abandonar a casa, onde a mãe carregava uma gravidez de anos e o irmão caçula virara uma triste galinha. De partida, procura o curandeiro que lhe fala da almejada terra em paz: "Esse lugar existe mas sofre de uma lonjura muito comprida".

À semelhança dos neologismos que transformam a oralidade em prosa poética na obra de Guimarães Rosa, Mia Couto burila as frases e as palavras, inventa verbos como "susplicar", e faz de cada linha de Terra Sonâmbula uma leitura de riqueza imagética e sonora.

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Serviço: Terra Sonâmbula, de Mia Couto (Companhia das Letras, 208 págs., R$ 38).

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