Porto Príncipe - O terremoto que atingiu o Haiti não poderia apagar a história centenária do país como um lugar que se libertou da escravidão e emergiu como um local rico em energia criativa, mas pobre em quase todos os outros aspectos.
Porém, alguns dos símbolos mais reverenciados da ascensão do país foram profundamente avariados. De seus centros governamentais majestosos a suas torres de adoração, de suas casas características até seus vibrantes centros de arte, a identidade cultural do Haiti foi devastada pelo tremor, afirmam especialistas, que estão apenas começando a ter uma noção mais exata das perdas.
"Olhamos e dizemos Meu Deus. Vamos mais adiante e dizemos de novo Meu Deus", disse Teeluck Bhuwanee, representante da Unesco no Haiti. "Não avaliamos todos os danos em todas as áreas culturais, mas sabemos que a situação é feia".
A paisagem da capital estava em pedaços muito tempo antes desse desastre, e muitos símbolos do passado tinham sido saqueados e destruídos nas reviravoltas políticas tumultuadas que tomaram o país nas últimas décadas.
Entretanto, o Haiti sempre teve orgulho de sua história como a primeira república independente negra do mundo, mesmo quando os governos não fizeram tudo que podiam para preservá-la.
Seu cenário artístico vibrante celebrava a criação do país, e seus edifícios públicos buscavam captar a grandeza de um passado no qual os haitianos se agarravam, apesar dos traumas políticos, da violência e de vários desastres naturais.
O Palácio Nacional era o principal símbolo do país, a Casa Branca do Haiti, um grande prédio cercado por portões de ferro que data de mais de um século, mas foi projetado em estilo renascentista francês para evocar uma época mais antiga.
O país nasceu após uma revolta de escravos contra os franceses, que tinham explorado a cana-de-açúcar no Haiti durante as décadas de domínio colonial.
O terremoto destruiu os prédios imponentes, desmoronou seus domos brancos característicos e causou perda total no equivalente ao Salão Oval da Casa Branca.
O palácio não tinha coleção permanente de artefatos, pois os líderes muitas vezes esvaziavam o lugar quando eram expulsos do poder. No entanto, assistentes do presidente disseram estar preocupados com peças de arte e esculturas insubstituíveis que eram exibidas em salões de cerimônia, fortemente abalados pelo tremor.
As cenas mais tristes estavam nas igrejas. A Catedral de Notre Dame era uma concha da sua antiga identidade. Na Igreja Episcopal de St. Trinity, os murais com versões haitianas de passagens bíblicas em suas paredes internas agora parecem um quebra-cabeça. O órgão, que os haitianos diziam com orgulho ser um dos maiores do Caribe, estava achatado.
Quando a marchand Axelle Liautaud soube que as equipes de demolição já estavam alinhadas para limpar o local, ela empalideceu e brigou para interromper o trabalho na esperança de que tijolos e pedaços de concreto contendo partes dos murais pudessem ser unidos novamente.
"Já sofremos tanta coisa além do fato de sermos pobres", disse Liautaud. "Nada do que é novo pode substituir o que é antigo. Tudo foi embora num dia só."
Esperança
Mesmo assim, havia sinais de esperança. O Museu Nacional do Haiti foi construído no subsolo de um parque em frente ao Palácio Nacional, e o portão que dá acesso a ele está trancado. Especialistas afirmam que as principais coleções provavelmente podem ter sobrevivido.
Nos Arquivos Nacionais, houve algum dano, mas documentos históricos importantes pareciam não estar ameaçados, disse Bernard Hadjadj, enviado especial da Unesco.
E o Escravo Foragido Desconhecido, uma escultura gigante na frente do palácio que retrata um homem fazendo soar uma concha enquanto acaba com a escravidão, está rodeado de desabrigados, mas continua de pé.
Sobras
Na capital, um artista levantava as duas mãos enfaixadas para o céu e emitia um som que era uma mistura de choradeira e urro. Mais do que por suas lesões físicas, a dor do homem, Paul Jude Camelot, estudante da Ecole Nationale des Arts, era pelos danos a sua última criação, uma pintura do universo que antes tinha uma escultura de barro representando a vida crescendo a partir do centro.
"Isso é praticamente tudo que me sobrou", disse ele.
Fora do Palácio Nacional, onde esculturas valiosas estavam despedaçadas em meio às ruínas, um dos desabrigados do parque era um pintor surrealista em ascensão, James Cesar Wah.
"Posso encontrar inspiração nisso", disse ele, avaliando todo o sofrimento. "Mas, por ora, os artistas precisam encontrar outra coisa para fazer. Agora eles têm que conseguir sobreviver, cuidar de suas famílias, para depois voltar à arte".
Jacmel
Bhuwanee da Unesco temia que o Citadel, um forte histórico no norte do país que estava ameaçado antes do terremoto, pudesse ter sido prejudicado, embora ele afirme não ter recebido nenhum relatório sobre o local. Ele também temia por Jacmel, uma cidade ao sul conhecida por sua arquitetura histórica.
Artistas afirmam ter perdido muitos de seus colegas no terremoto, embora ninguém saiba ainda como era a comunidade criativa do Haiti. Alguns insubstituíveis tesouros culturais do país foram prejudicados e destruídos, caindo de paredes e pedestais.
"Pode parecer algo superficial se preocupar com pinturas num momento como este", disse Liautaud, membro da diretoria do Centre dArt, responsável por dar vida ao movimento artístico naïf do Haiti, na década de 1940. "É claro que devemos nos preocupar primeiro com as pessoas. Mas o motivo pelo qual ainda existe um país, apesar de todos os nossos problemas, é nossa cultura forte".
Ela falou do lado de fora do centro, agora um edifício cambaleante, suas paredes destruídas e seu esconderijo de pinturas haitianas expostos à natureza. Algumas obras de arte já estavam completamente destruídas.
As obras mais valiosas pareciam estar intactas, embora facilmente disponíveis para qualquer passante que ousasse entrar.
Livros
Patrick Vilaire, escultor, se encontrou recentemente com outras pessoas preocupadas em salvar alguns dos textos históricos do país. Eles colocaram como prioridade na agenda preservar a coleção particular de livros em duas casas privadas. Numa, pertencente a um famoso historiador local, George Corvington, milhares de trabalhos coletados sobre a história do Haiti sofriam o risco de serem perdidos nas ruínas de sua residência.
"Ele coleciona livros há 40 anos", disse Vilaire. "Provavelmente é a maior coleção de livros de história no Haiti".
Na segunda casa, os livros em perigo eram textos sobre política e economia dos séculos 19 e 20.
Questionado sobre o motivo pelo qual ele se preocupa com livros antigos depois de um evento tão catastrófico, Vilaire respondeu: "Os mortos estão mortos, sabemos disso. Mas se não tivermos a memória do passado, o resto de nós não vai conseguir levar a vida adiante".
Tradução de Gabriela dAvila.