Nova Iorque - Seria difícil de acreditar se não houvesse provas: Samuel Beckett, o mais taciturno e recluso dos escritores do século 20 o homem que afirmou ser "toda palavra uma desnecessária nódoa sobre o silêncio e o vazio" produziu, na verdade, um dos mais extensos conjuntos de correspondência pessoal do século.
Mais de 15 mil cartas de Beckett foram descobertas em acervos e coleções particulares, e a Universidade de Cambridge planeja editar uma seleção delas em quatro alentados volumes, o primeiro já lançado. Com quase 800 páginas, o Volume 1 reforçado pelo aparato crítico, além das cartas propriamente ditas é um catatau. Mas a leitura não é pesada: o que encontramos nessa interessante correspondência, em sua maioria escrita quando o autor tinha mais ou menos 30 anos, é um Beckett desbocado, de um humor mordaz e escatológico, mas quase sempre (e isso talvez seja o mais surpreendente) afetuoso e sincero.As cartas foram postadas de diversas cidades, incluindo Paris, Dublin, Londres e Dresden, durante viagens que Beckett realizou para assumir postos temporários como professor, descansar ou em busca de ocasiões para clarear a mente e poder escrever. Eram períodos de solidão, mas ele tinha muitos amigos, entre eles James Joyce, as herdeiras Nancy Cunard e Peggy Guggenheim e o pintor Jack Butler Yeats, irmão de William Butler Yeats.
Trocar correspondência fazia Beckett se sentir em contato com o resto do mundo. Ele respondia "prontamente e de forma educada a praticamente todas as cartas que lhe eram endereçadas", escrevem os editores do material. Costumava concluir com "Sempre seu" ou "Os mais belos votos" ou "Fique com Deus". E, logo abaixo, simplesmente "Sam".
Preparar a correspondência para publicação não foi, certamente, tarefa fácil. Nas cartas, o autor alternava três línguas inglês, francês e alemão e usava neologismos e trocadilhos multilíngues em abundância. Além disso, segundo um especialista, tinha "a pior letra cursiva de um autor no século 20". (Sobre isso, embora solidário, tenho minhas dúvidas: passei maus bocados estudando o acervo de James Agee.)
Tão surpreendente quanto a existência dessas cartas é o fato de Beckett, quatro anos antes de sua morte, ter autorizado sua publicação. Sob uma condição algo impalpável: queria que apenas as cartas "que tratem de minha obra" fossem publicadas. Parece razoável, em teoria, mas o que, na prática, significaria isso? Beckett não está mais por aqui para julgar. Os editores, acertadamente, seguiram uma "política de inclusão", acreditando que quase tudo o que ele escreveu lança luz sobre sua obra conhecida. Mas, com o testamento, algumas batalhas foram claramente perdidas ao longo do caminho, de modo que os quatro volumes são uma seleção autorizada das cartas, mais "escolhidas" do que propriamente "reunidas".
Beckett também disse aos editores: "Por favor, sem comentários", ao que eles responderam: "Mas a contextualização é necessária". Há fartura de contexto nos volumes agora editados, a ponto de as letrinhas miúdas ao pé de cada carta se estenderem, com frequência, por mais páginas do que a carta em si.
Entre os anos de 1929 e 1940, Beckett lutou para conseguir publicar suas primeiras obras entre os livros desse período, estão a coletânea de histórias More Pricks Than Kicks (1934) e o romance Murphy (1938) , mas ao mesmo tempo ficava receoso tanto do processo de publicação quanto da publicidade que atrairia. Devorava livros, arte e música as cartas estão recheadas de suas opiniões sobre cultura. Escrevia maravilhosamente por epigramas: "Dublin mata de tédio, Londres acaba com a paciência", escreveu em 1934. E em 1937: "T. Eliot é toilet ao contrário".
Em algumas das melhores passagens, Beckett comenta livros com o fígado. Chama A Origem das Espécies, de Darwin, de "mixórdia mal-escrita". Uma parte da obra de Proust vira "ruminação piegas evacuada por uma barriga em cólicas". Lawrence é tratado como "tedioso". Sempre pronto a se fazer de vítima, escreveu numa das cartas: "A senhorita Costello me disse: Você nunca tem nada de bom para dizer de ninguém, só vê defeitos. Acho que foi a coisa mais simpática que ouvi em muito tempo".
Seus comentários de ordem estética são quase sempre interessantes. "É precisamente porque a música fica em segundo plano que o balé me irrita", escreveu em 1934. "Música de verdade não serve aí."
Como o livro se atém às cartas que tratam da obra, e a contextualização por vezes é árida, alguns dos fatos mais cruciais daqueles anos são omitidos ou mencionados muito de passagem. O leitor tem pouca informação, até as notas finais, sobre o fato de a relação com Joyce ter azedado depois que Beckett repeliu os avanços da filha do amigo, Lucia. O caso com Peggy Guggenheim mal é mencionado. Também apenas nas notas finais fica-se sabendo que o autor e sua então futura esposa, Suzanne Deschevaux-Dumesnil, se tornaram próximos quando ele, esfaqueado por um pedinte numa rua de Paris, recebeu uma visita dela.
Por outro lado, há muito o que descobrir sobre os problemas de saúde de Beckett: palpitações, cistos, problemas anais e estados depressivos. "Estou deprimido como um repolho bichado", escreveu. Outras cartas sugerem carreiras intrigantes que ele acabou não seguindo. Em uma delas, diz querer se tornar piloto comercial. (Imagine-se o que a trupe do Monty Python não faria com a ideia.) Em outra, escreve ao diretor russo Sergei Eisenstein com a esperança de ser aceito na Faculdade Estatal de Cinematografia de Moscou.
Beckett ajudou a preparar Finnegans Wake para publicação, e o próprio Joyce faz várias aparições ao longo da correspondência. "Joyce me pagou 250 francos por mais ou menos 15 horas de revisão dos seus originais", escreveu Beckett em 1937. "E depois inteirou o pagamento com um sobretudo velho e cinco gravatas! Não recusei. É tão mais fácil ser magoado do que magoar."
Às vezes, Beckett tinha urgência dos amigos; noutras, queria simplesmente ser deixado em paz. "Essa gente velha e esses lugares antigos me fazem sentir como um anfíbio preso a um solo seco, muito, muito seco", escreveu. Soa como a prosa de um velho. Beckett tinha 32 anos à época. Em várias passagens das cartas, ele dá a impressão de que não conseguiria ir adiante. Mas, enquanto esperamos pelos Volumes 2, 3 e 4 de sua ativa correspondência, está muito claro que, para nossa sorte, ele seguiu em frente.Tradução de Christian Schwartz.
Serviço
The Letters of Samuel Beckett: Volume 1, 1929-1940, de Martha Dow Fehsenfeld e Lois More Overbeck (editoras). Cambridge University Press, 882 págs., US$ 50 (cerca de R$ 90).
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