Um homem pode ser avaliado pelas suas ações, diz uma das máximas mais repetidas pelos humanos já faz tempo. "Conhecem-se a árvores pelos frutos" é outra frase continuamente enunciada, presente e consolidada no imaginário ocidental. Até Chico Science cantou, em "Etnia", algo similar a esse conceito: "Não há mistérios em descobrir/ O que você é e o que você faz." Ali Kamel, atual diretor responsável pela Central Globo de Jornalismo, por sua vez, decidiu estudar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a partir de um outro viés: pelas palavras que enunciou. O resultado está no recém-publicado Dicionário Lula: Um Presidente Exposto por Suas Próprias Palavras.
A obra é um trabalho de fôlego. São 672 páginas. Kamel rastreou todos os discursos improvisados do presidente Lula, desde a posse, no início de 2003, até 31 de março deste ano (momento em que o autor finalizou as pesquisas). O jornalista, então, deparou-se com mais de três milhões de palavras. A partir de um programa de computador, foi possível, por exemplo, apontar quais as palavras mais utilizadas. O dicionário apresenta verbetes de A até Z, com as frases de Lula, e o contexto em que cada discurso foi enunciado.
No entanto, o que mais chama a atenção é o texto introdutório, "Lula, em Palavras e Números", pouco mais de 90 páginas, em que Kamel faz, mais que apresentação, uma contextualização do projeto. Em primeiro lugar, fala do ineditismo do trabalho no Brasil, em contraponto aos EUA, país em que as palavras dos presidentes são tema de estudos em inúmeras universidades.
Kamel sabe que os homens podem, sim, ser avaliados pelo que realizam, mas os homens públicos são bem mais do que ações, estradas, pontes e programas sociais. "Eles (os presidentes) quase sempre são mais lembrados pelo que disseram do que pelo que fizeram."
Os verbetes, por si só, sem nenhuma análise, já revelam muito a respeito do presidente. Sobre "imprensa", Lula se revela contraditório. Em 2005, ele afirmou que "O importante é a gente ler todos os jornais que puder ler por dia, ler todas as revistas que puder ler por semana, e ver todo os programas de televisão." Ano passado, em entrevista a ao jornalista Mario Sergio Conti, publicada na revista Piauí, Lula revelou outro ponto de vista: "Tenho não (o hábito de ler jornais todas as manhãs), eu não tenho isso faz tempo, faz tempo. Não é que eu não quero fazer. (...) Eu tenho problema de azia. Eu me cuido profundamente, para não perder o humor logo cedo."
De toda forma, independentemente de eventuais erros e acertos verbais (do presidente), Kamel reconhece que Lula é um "comunicador sem igual". "Pode-se discordar do que ele fala, mas não há como negar que ele se comunica com extrema competência." Uma das razões para essa boa performance de comunicação do presidente, no entendimento de Kamel, é o uso das metáforas: "Governar é como uma maratona. Você não pode começar a 80 por hora, porque o seu fôlego pode acabar na primeira esquina."
Além das metáforas, repetição, simplicidade, e mesmo alguns erros, são os ingredientes que fizeram do atual presidente essa espécie de esfinge, que ninguém ainda decifrou completamente daí a relevância de trabalhos como esse, de Kamel, que ajudam a entender, e mesmo a desconstruir, o fenômeno chamado Lula.
Serviço:
Dicionário Lula. Ali Kamel. Nova Fronteira. 672 páginas. R$ 59,90. GGG.
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"Para ajudar-se nessa tarefa de se fazer entender, Lula lança mão de outro recurso, a repetição, cuja importância ele parece ter reconhecido desde o primeiro instante. Novamente, trata-se de um recurso consciente, proposital. Em todo o período analisado, ele usa o verbo repetir e suas variantes 345 vezes. Geralmente, ele repete e diz, transparentemente, que repete. Ele usa, mais frequentemente, as seguinte construções: vou repetir, digo e repito etc."
Trecho de Dicionário Lula, de Ali Kamel.
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