Uma nuvem de tempestade parece pairar sobre a cabeça Iákov Bok, protagonista de O Faz-Tudo (Tradução de Maria Alice Máximo. Record, 402 págs., R$ 45,90). A existência dele parece tão amaldiçoada que chega a provocar um sorriso nervoso, lembrando os melhores (piores) momentos da hiena Hardy – aquela que dizia "ó vida, ó azar" no desenho animado da Hanna-Barbera. Porém, o humor de Bernard Malamud (1914 – 1986) não é do tipo engraçado, mas trágico, da mesma forma que a vida do personagem que retrata. "Se eu fosse vendedor de velas, o sol não ia se pôr", lamenta Bok.

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Escrito em 1966, O Faz-Tudo é o romance mais famoso de Malamud, pelo qual venceu os dois principais prêmios das letras americanas – National Book e Pulitzer. Embora celebrado em vida, é difícil medir sua influência na atualidade. Entusiastas defendem a inscrição do seu nome no cânone da literatura judaico-americana, onde estão Saul Bellow e Philip Roth. Outros dizem que não é para tanto.

A inspiração para a história de Bok, que vive em uma aldeia judaica fazendo pequenos serviços de marcenaria e consertos em geral (daí o faz-tudo do título), foi um crime ocorrido em Kiev, Ucrânia, no ano de 1911, no qual um menino de 12 anos, de religião cristã, foi morto com requintes assustadores. O oleiro Mendel Beilis foi considerado culpado, basicamente, por ser judeu e trabalhar perto do local onde ocorreu o assassinato. Organizações anti-semitas não hesitaram em pedir sua cabeça – ainda mais em uma realidade onde massacres de judeus começavam a ocorrer de maneira sistemática, os chamados pogroms, bancados pelo Exército Vermelho.

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Esse é ponto de partida de Malamud. O parágrafo de abertura dá todas as coordenadas para o leitor: ele mora em um quarto em cima da fábrica de tijolos onde trabalha, pela janela percebe uma movimentação estranha na rua e descobre que o cadáver de criança, morta há mais de uma semana, foi encontrado em uma caverna perto dali. Panfletos acusam judeus do assassinato. A partir do segundo parágrafo começa um flashback de 76 páginas, levando a narrativa para o tempo em que Bok vivia no campo e sonhava com Kiev, Amsterdã e talvez a América.

Depois de se casar, passou anos tentando ter um filho, mas não conseguiu. Segundo o Talmude, um homem sem filhos é "vivo porém morto". Frustrado com o casamento, mais tarde seria traído pela mulher. Sem honra e sem dinheiro, deu um jeito de escapar para Kiev. Uma série de acasos provam que ele não é tão azarado quanto pensava e termina conseguindo um bom emprego na tal fábrica.

Como se o universo precisasse de equilíbrio, tanta sorte levou a uma situação colateral e Bok, justamente quando pensava ter organizado sua vida, é acusado da morte da criança cristã.

Do capítulo três em diante, Bok está na cadeia à espera de seu julgamento, para o qual se encaminha nas últimas páginas do livro. Fazendo as contas, são mais ou menos 300 páginas de um dia-a-dia miserável, descrito como prova do quanto a existência pode ser absurda e injusta. Bok é um bode expiatório – da mesma forma que o povo judeu na História.

Na teoria desenvolvida pelo pensador René Girard, o "mecanismo do bode expiatório" se caracteriza com a morte de um inocente, sacrificado para estabelecer a paz e a ordem em comunidades primitivas. Mas até esse significado parece ser negado ao "homem que conserta coisas". Bok sofre horrores, mas não chega a ser morto. Quer dizer, seu sacrifício não é completo. Até a redenção lhe é negada, pois nem sequer o julgamento acontece. Desprovida de sentido, sua trajetória consegue somente deprimir.

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"O homem sofre, mas continua a viver", é uma das conclusões lançadas pelo escritor – o que é pouco para o leitor atravessar o inferno de Bok. É outra frase, usada como epígrafe pela tradutora Maria Alice Máximo na introdução de O Faz-Tudo, que explica muito sobre a forma de Malamud enxergar o mundo: "Todo homem é judeu embora talvez não o saiba". A injustiça não discrima ninguém.