O escritor Philip Roth disse certa vez que os leitores esquecem com frequência que Franz Kafka (1883-1924) pode também ser muito engraçado. É uma afirmação estranha relacionada ao autor de A Metamorfose e O Castelo. Talvez o estranhamento tenha mais a ver com a vida íntima do escritor checo, que sofria terrivelmente com coisas mundanas e sentimentais, como ter uma casa ou arranjar uma mulher. Isso sem mencionar as relações familiares complicadas, dissecadas na Carta ao Pai.
O fato é que o ilustrador alemão Nikolaus Heidelbach conseguiu extrair de Kafka o humor que não se costuma associar a ele. No livro Oportunidade para um Pequeno Desespero, publicado agora no Brasil, ele selecionou e ilustrou fragmentos de romances, diários e cartas.
O estilo de Heidelbach, de 55 anos, se liga aos textos kafkianos como se os dois fossem uma coisa só. O realismo dos desenhos é invadido por elementos absurdos. O mesmo acontece na obra literária. Parte da força de A Metamorfose está nas descrições minuciosas e plausíveis de uma situação surreal o homem que acorda e descobre não ser mais humano, mas uma criatura grotesca, que lembra uma barata (ainda que a palavra "barata" não apareça em momento nenhum).
Em O Processo, a falta de explicação para a perseguição sofrida pelo protagonista angustia porque é crível, mesmo sem ter uma razão declarada.
O Kafka que aparece na capa do livro de Heidelbach é a síntese dessa realidade carcomida pelo absurdo: o escritor está muito bem vestido, com colete e chapéu coco. Não há nada errado com ele, a não ser por uma mão esquerda monstruosa.
"Envio em anexo uma fotografia minha,/ Devia ter um cinco anos,/ Na época, o rosto bravo foi um gracejo,/ Hoje o considero sinal de austeridade oculta", escreve Kafka numa correspondência. (É uma pena, mas Heidelbach não dá referências dos trechos escolhidos.) A ilustração se inspira numa foto conhecida de Kafka, mas, no lugar do escritor quando menino, está um ser de traços símios. É assustador e também... Engraçado.
Em "Vinte Pequenos Coveiros", o desenho mostra um caixão sustentado por duas dezenas de sujeitos minúsculos, "nenhum maior que uma pinha média". No fragmento "A Ponte", um homem se estica sobre um abismo, como se estivesse prestes a despencar imagem que bem poderia resumir toda a literatura de Kafka.
O valor de Oportunidade para um Pequeno Desespero está, exatamente, na leitura incomum que faz de um autor muito lido e interpretado.
Serviço:
Oportunidade para um Pequeno Desespero, de Franz Kafka, organizado e ilustrado por Nikolaus Heidelbach. Tradução de Renata Dias Mundt. Martins Martins Fontes, 120 págs., R$ 42.