
Arthur Bispo do Rosário, Zuzu Angel, Lupicínio Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Nara Leão, Guimarães Rosa, bonecas de barro feitas por artesãs do Vale do Jequitinhonha e até a chefe de seu ateliê de costura, Dona Nilza, já serviram de inspiração para as coleções do estilista mineiro Ronaldo Fraga.
Movidas por extensas pesquisas e pelo desejo de dar à moda brasileira uma identidade que seja vista como diferencial, as coleções de Fraga, há alguns anos, têm os desfiles mais concorridos da maior vitrine de moda do país, a São Paulo Fashion Week, da qual participa desde 1996, quando o evento ainda se chamava Phytoervas Fashion.
Avesso a tendências, Fraga, que é formado em estilismo pela Universidade Federal de Minas Gerais e pós-graduado pela nova-iorquina Parsons School, leva adiante os temas de suas coleções e as intenções sociais que movem seu trabalho. Autor dos livros Moda, Roupa e Tempo Drummond Selecionado e Ilustrado por Ronaldo Fraga (fruto da coleção Todo Mundo e Ninguém, de 2005, inspirada na obra do poeta mineiro) e Nara Leão Ilustrada por Ronaldo Fraga para Crianças de 0 a 100 Anos (este ainda a ser publicado pela editora Cosac&Naify), o estilista reforça a intercambialidade da moda com outros gêneros culturais ao assinar os figurinos de Fernanda Takai (vocalista da banda mineira Pato Fu) e dos espetáculos do Grupo Corpo, companhia de dança mineira.
Isso sem falar nos inúmeros projetos sociais dos quais faz questão de participar, como a visita a aldeias indígenas de Tocantins (realizada poucos dias antes de Fraga conceder esta entrevista ao Caderno G), com intuito de conhecer o trabalho realizado pelos índios e elaborar um projeto a convite da Secretaria do Trabalho e Assistência Social daquele estado. Confira a seguir, alguns trechos do bate-papo.
Caderno G Qual foi a influência de manifestações culturais como literatura, cinema e música na sua decisão inicial de se dedicar à moda? Como percebeu que tais elementos poderiam ser transportados para a criação de roupas?Ronaldo Fraga Desde o início da minha carreira, a identidade (ou cultura) brasileira sempre foi meu grande referencial. Vivemos num país que possui uma cultura popular bastante rica, muito mais do que outros lugares. Temos hoje um produto que já se vende por si próprio, que é a música brasileira talvez, o produto mais bem acabado que o Brasil tem. Eu sempre admirei estilistas ou escolas de moda do mundo em que a moda também era tratada como uma manifestação cultural. Então, para mim, essa escolha sempre foi natural. Evidentemente, no início da minha carreira, as pessoas achavam isto um absurdo, acreditavam que a moda só estava relacionada à roupa e aos negócios. Mas tínhamos pouco tempo de cultura de moda no Brasil, ainda hoje é tudo muito recente nessa área. Entender a moda como tal é uma coisa nova. Hoje, o grande desafio da moda brasileira é que ela seja reconhecida no mercado mundial por alguma característica, o que muitos chamam de identidade, ou seja, há uma necessidade de análise da identidade dos produtos. Acho que, nesse caso, nós ainda colocamos muito pouco da nossa cultura para trabalhar a nosso favor.
Como analisa a recepção a suas criações no exterior?É fantástica. Tanto que meu último desfile foi escolhido para ser apresentado em Tóquio, no dia 28 de agosto (coleção Nara Coração de Leão, apresentada na mais recente edição da São Paulo Fashion Week). Se há algum tempo as pessoas se queixavam de que os estrangeiros não entendiam a moda brasileira, hoje a situação é outra. Eles querem entender. Se num primeiro momento vinha ao Brasil um comprador que confundia nosso país com a China ou México por exemplo, na confecção de commodities , hoje, já vem um outro tipo de comprador destinado a levar produtos que tragam a marca do Brasil, associada por eles à eterna juventude, a uma boa relação com o corpo, à cor e à música. Querem um produto que fale disso tudo. A música brasileira fala, mas a moda brasileira não.
De que maneira você escolhe os temas de suas coleções? Que tipo de sensação um produto cultural precisar causar em você para que a inspiração aconteça?Tudo pode ser abordado por uma coleção de moda. A moda é um olhar sobre o tempo em que estamos vivendo. Há uma série de assuntos que gostaria de trabalhar, mas procuro selecionar coisas que me estimularam a olhá-las e pensá-las através da moda, mas que ao mesmo tempo possam trazer algo caro ao mundo moderno e à própria história da moda. Na minha última coleção, inspirei-me em Nara Leão, uma artista que construiu um estilo exercitando e transitando por diferentes correntes, o que, para mim, é também o grande desafio da moda.
É possível afirmar que o mesmo critério foi adotado nas coleções São Zé (inspirada na obra do músico Tom Zé) e Quantas Noites Não Durmo (inspirada na obra do cantor e compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues), ambas de 2004?Sim, foi a mesma coisa. O Tom Zé desenvolveu uma estética tropicalista muito própria. Os instrumentos que ele utiliza para fazer música e a maneira extremamente individual com que ele entende o mundo também coincidem com a proposta da moda. Hoje, não há mais lugar para tendências. O estilista precisa estimular o olhar individual e o desejo de quem vai consumir a roupa.
E quanto às referências literárias a Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa nas coleções Todo Mundo e Ninguém (inverno de 2005) e A Cobra Ri (verão de 2007), respectivamente. Como relaciona moda e literatura? Sempre fui de ler muito. Mas a idéia de trazer isto para a moda surge a partir de uma idéia que sempre associei a este universo: a roupa é uma página em branco que uma pessoa compra e a escrita sobre essa página deve ser individual. Ou seja, quando a pessoa compra uma roupa ela passa a ser sua criadora. Isto já basta como associação à literatura. Tanto a obra de Drummond, quanto a de Guimarães Rosa trazem coisas muito caras ao mundo da moda e ao mundo moderno. A análise do tempo através do olhar gentil e delicado de Drummond é algo extremamente raro neste mundo louco em que a gente vive. Já a sofisticação de um lugar onde não existe limite entre o erudito e o popular é uma característica marcante na obra de Guimarães Rosa, assim como é para a moda. Estabelecer estas relações e tentar lê-las através da roupa foi o que me moveu a trazer e a pensar em trazer outros gênios da literatura para este universo.
Como funcionam as pesquisas que realiza para a criação de suas coleções?Para mim, o melhor da coleção é a pesquisa. Eu procuro pistas o tempo inteiro. Independentemente de a coleção ser ou não focada na literatura. Por exemplo, para a coleção de Nara, embora ela seja uma cantora, eu tive de ler muito. Li biografias de todos os seus contemporâneos, nas quais ela aparece de alguma forma. Criar este universo de mosaicos para chegar no personagem é muito estimulante. E quando o cliente percebe esta pesquisa no produto, passa a se envolver mais com ele. É uma forma de agregar valor ao produto roupa.
Acredita que as referências culturais utilizadas em suas coleções contribuem de certo modo para desmistificar a idéia de futilidade comumente associada ao mundo da moda?No mundo maravilhoso de Ronaldo Fraga (risos), parto do princípio de que todo mundo já entende a moda como um instrumento de reafirmação cultural de um povo, e de que essa essa história do estilista afetado que só fala futilidades em torno do universo moda, reforçando a idéia de conversa de madame, já ficou para trás. Eu prefiro acreditar nisto e é o que me move. Há dez anos, até meus professores diziam que eu iria passar fome, porque se já era difícil vender cultura no Brasil, mais ainda seria vender moda associada à cultura. Eu insisti nesse caminho. Hoje, quando me falam que o meu desfile é o mais concorrido da São Paulo Fashion Week, ou quando me vejo em meio a tremendas dificuldades em relação à distribuição de convites, porque a sala de desfiles está sempre lotada, penso: apostei, acreditei e acho que valeu à pena.
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