Faz anos que “Game of Thrones” vem apontando para a ideia de que, se as mulheres chegassem ao poder em Westeros e Essos, o mundo seria governado de um modo um pouco diferente.
A série não tem poupado ninguém em sua dramatização das más decisões tomadas pelos homens no poder, desde a loucura genocida do Rei Aerys (David Rintoul), até o alcoolismo de Robert Baratheon (Mark Addy), a crueldade pérfida de Roose Bolton (Michael McElhatton), a impulsividade de Robb Stark e o fanatismo implacável de Stannis Baratheon.
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Já, no Oriente, em contraste, Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) vem guiando os seus dragões numa marcha através de Essos, libertando escravos e assumindo títulos como a Destruidora de Correntes, além de tantos outros mais incomuns. E, no domingo (26), a “Batalha dos Bastardos” apontou completamente para a ideia de que a revolução que chegará em Westeros será feminina. Mas, por mais que seja emocionante, talvez mesmo até empoderadora, a ideia de mudar a pessoa no topo da pirâmide – seja esta uma pirâmide governamental padrão ou em estilo Meereen –, será que ela é verdadeira? Tanto a própria série quanto a ciência política sugerem que há um limite para o quanto as coisas podem mudar só pelo simples gesto de se colocar mulheres no poder.
Questão de gênero
Gênero parece fazer toda a diferença no tocante a políticas domésticas, pelo menos nos termos de quais assuntos são discutidos e quais as mudanças de políticas são propostas pela legislação. Como escreveu Lauren Sandler em 2012 sobre um estudo feito com quase 140.000 documentos legislativos introduzidos no Congresso ao longo de um período de 40 anos, “as mulheres propuseram o dobro de projetos de lei sobre direitos e liberdades civis; mais projetos também sobre preocupações ‘familiares’ e significativamente mais sobre direitos trabalhistas, imigração, educação e saúde”.
Um estudo feito com quase 140.000 documentos legislativos introduzidos no Congresso ao longo de um período de 40 anos mostrou que “as mulheres propuseram o dobro de projetos de lei sobre direitos e liberdades civis; mais projetos também sobre preocupações ‘familiares’ e significativamente mais sobre direitos trabalhistas, imigração, educação e saúde”
“Game of Thrones” não está exatamente discutindo assuntos como licença-maternidade ou educação – um mundo em que até mesmo alguém que queira construir uma igrejinha rural pode acabar brutalmente assassinado não é bem um lugar onde se possa ir mais a fundo no tocante a questões sociais. Mas, conforme a preocupação da série com violência sexual vem ficando mais grave ao longo das temporadas, ela tem nos obrigado a lidar com as consequências do estupro para mulheres como Cersei Lannister (Lena Headey), a própria Dany e Sansa Stark (Sophie Turner), e essa acabou se tornando uma área em que há uma diferença clara para as líderes mulheres da série.
Os homens, mesmo os homens decentes, podem até ficar furiosos com casos de estupro e horrorizados pelas práticas sexuais de alguém como Craster (Robert Pugh), um dos selvagens, que estupra suas filhas e abandona os filhos meninos na floresta. Mas eles raramente tomam uma atitude para impedir os estupros, seja num nível pessoal ou político.
Quando Ned Stark (Sean Bean) tenta trazer de volta sua irmã Lyanna, que ele acredita ter sido sequestrada e estuprada por Rhaegar Targaryen, sua motivação era a ruptura do contrato de casamento de Lyanna e suas preocupações quanto ao bem-estar dela. E, quando a Patrulha da Noite finalmente decide fazer algo a respeito de Craster, cuja atitude de predador sexual eles vinham tolerando em troca de abrigo em expedições mais longas, ele acaba assassinado como parte de um colapso disciplinar generalizado e não executado em alguma campanha maior contra estupros.
Vingança
Já as mulheres, por outro lado, priorizaram a violência sexual, mesmo que seja só como forma de autoproteção. Cersei tramou o assassinato do seu marido. Sansa matou seu estuprador. Dany queimou vivos os khal dothraki quando eles falaram em escravizá-la ou vendê-la.
Dany faz a seguinte declaração: “Nossos pais, de todos nós aqui reunidos, eram homens perversos. Eles deixaram o mundo um lugar pior do que quando o encontraram. Nós não vamos fazer isso. Nós vamos deixar o mundo melhor do que quando o encontramos”, e, com isso, ela consegue negociar uma estranha barganha com Yara Greyjoy (Gemma Whelan). Yara jurou a Dany que, se Dany ajudá-la a recuperar as Ilhas de Ferro, ela irá mudar a cultura de pirataria que fez com que ela se tornasse alvo dos dothraki, abandonando a pilhagem e o estupro em prol de... bem, qual será a base da economia deles não ficou ainda muito claro.
Dany promete muito, mas, apesar disso, há algo de incômodo no seu comportamento na “Batalha dos Bastardos”. Seu primeiro instinto ao descobrir que os mestres haviam invadido Meereen foi crucificá-los e, em essência, incendiar sua civilização com o fogo dos dragões. É a reação de uma adolescente traumatizada e munida de armas raras, não de uma chefe de estado madura.
Em Westeros, Sansa tenta de novo e de novo aconselhar seu irmão Jon (Kit Harington) para que ele se esperte e evite entrar em combate com o ardiloso Ramsay Bolton (Iwan Rheon), com sua tropa reduzida e um déficit psicológico considerável (uma lição em “Game of Thrones”: na luta da honra contra a sociopatia, a honra costuma sair perdendo). Ele se recusa a dar-lhe ouvidos, e ela não lhe conta um segredo: que ela havia pedido auxílio militar para Petyr Baelish (Aiden Gillan). E, quando Jon foi levado a trair seu próprio plano de batalha e permitiu que suas tropas fossem encurraladas por uma manobra de pinça que transformou a batalha numa chacina, Sansa só observou e aguardou enquanto as forças de Ramsay foram se expondo, só para que então os Cavaleiros do Vale chegassem e as fizessem em pedaços.
Estratégia
As tendências destrutivas e pouco diplomáticas de Dany e Sansa são certamente coerentes com suas circunstâncias pessoais. A família inteira de Dany foi assassinada, exceto por um irmão sobrevivente que a vendeu e foi abusivo com ela, e ela não tem a menor tolerância com pessoas que demonstrem essas mesmas intenções numa escala social.
A lacuna consistente entre os gêneros, de 8-9%, que fez com que as mulheres, como um todo, fossem mais pacíficas do que os homens em sua abordagem à política externa desde a década de 1960
Sansa foi estuprada e torturada repetidamente por Ramsay, que, sendo seu marido, era, em essência, seu dono. Ela o conhece bem e não consegue tolerar a ideia de que ele poderia continuar existindo, por motivos que são tanto pessoais quanto estratégicos.
Mas suas reações são também consistentes com as pesquisas contemporâneas em ciência política, algumas das quais sugerem que líderes mulheres se tornam mais agressivas conforme vão ascendendo ao poder.
Um estudo, como aponta Rhodri Jeffreys-Jones em “Changing Differences: Women and the Shaping of American Foreign Policy, 1917-1994”, descobriu “a lacuna consistente entre os gêneros, de 8-9%, que fez com que as mulheres, como um todo, fossem mais pacíficas do que os homens em sua abordagem à política externa desde a década de 1960. Mas, com base em sua pesquisa sobre as visões das mulheres dentro dos departamentos de Estado e Defesa, os autores concluíram que a lacuna entre gêneros era muito menos evidente no caso dos membros internos aos departamentos”.
Hillary Targaryen
Há quem possa querer comparar Hillary Clinton a Dany após seu recente discurso inflamado no qual ela destruiu Donald Trump, ao mesmo tempo em que expôs uma visão agressiva de sua própria política externa. Mas os paralelos são razoáveis: se Clinton vencer a corrida presidencial e der avanço às políticas familiares que movimentaram boa parte de sua carreira, isso pode se dar, em parte, ao convencer os eleitores e figuras do establishment de que ela seria mais durona lá fora do que qualquer um de seus concorrentes homens.
(Os pesquisadores) sugeriram que mulheres ‘tradicionais’ preferiam paz, mas as mulheres empoderadas estavam preparadas para jogar o mesmo jogo que os homens
“(Os pesquisadores) sugeriram que mulheres ‘tradicionais’ preferiam paz, mas as mulheres empoderadas estavam preparadas para jogar o mesmo jogo que os homens”, continua Jeffreys-Jones. Em “Game of Thrones”, isso significa que algumas mulheres podem ser capazes de transformar o mundo num lugar mais seguro para elas mesmas. Mas é possível que elas tenham que consumir cidades inteiras em chamas e sangue para projetar a força que permitirá que elas governem.
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