Tudo começou em 8 de setembro de 1822. Foi no dia seguinte à Independência do país que o jeitinho brasileiro para resolver todo e qualquer tipo de problema, muitas vezes às margens da lei, começou a ser moldado. E a corrupção ganhou terreno. A tese é o pano de fundo da sátira “Filhos da Pátria”, nova série, com redação final de Bruno Mazzeo, que a Globo está filmando para levar ao ar no segundo semestre de 2017.
“Eu queria falar do brasileiro, da nossa essência, das coisas que permanecem na nossa História até hoje. Temos esse DNA do jeitinho para resolver as coisas. E isso se reflete em tudo. A gente sabe pouco sobre essa parte da História, mas está tudo nos livros. Somos fruto de uma sociedade que não rolou e ainda pagamos essa conta”, diz Mazzeo.
Com o curitibano Alexandre Nero e Fernanda Torres como protagonistas e direção de Mauricio Farias, a produção acompanha, sob a ótica do humor, as transformações que marcaram a origem da identidade brasileira e o enraizamento da corrupção. Ambientada num Rio de Janeiro à espera de grandes mudanças após a recém-proclamada Independência do país, a série, em 12 episódios, faz uma crônica dos costumes do Brasil do século XIX por meio de figuras anônimas.
Os protagonistas da história são integrantes de uma típica família de classe média da época. Interpretado por Alexandre Nero, Geraldo Bulhosa é um funcionário público português que trabalha no Paço Imperial como interlocutor das relações entre Brasil e Portugal. Após a Independência do país, ele perde o poder do seu cargo oficial. Mas é incentivado pela mulher a se envolver em esquemas de corrupção na repartição em que trabalha com a ajuda do colega Pacheco (Matheus Nachtergaele).
“A gente mostra como pessoas comuns vão se corrompendo e traça um paralelo entre o que está acontecendo no Brasil agora. Mostramos o funcionário público, o empresário, o atravessador, o político, o juiz... Tem ainda o baixo clero, o cara que fica com as migalhas”, conta Farias.
O diretor explica que quis transitar entre diferentes tons de comédia até chegar ao drama: “Vamos da tragédia ao humor rasgado, passando pela comédia de situação e até a física.”
Sérgio Cabral do século XIX
Na série, Geraldo é casado com Maria Teresa, personagem de Fernanda Torres, uma mulher capaz de tudo para fazer parte da alta sociedade carioca. “Ela achava que tinha se casado errado, mas o marido se torna um homem maravilhoso à medida que se corrompe”, diz Fernanda. “A personagem tem isso do novo rico, de gastar, possuir bens. No começo, o café da manhã da família é um milho e uma tapioca. À medida que vão progredindo, muda tudo. Gravei uma cena em que ela vai comprando prataria compulsivamente e bota tudo numa caixa. É a coisa do Sérgio Cabral com essas joias, sapatos Louboutin e esse gosto por bolsas Louis Vuitton. Esse gosto do rico pelo luxo.”
“A gente mostra como pessoas comuns vão se corrompendo e traça um paralelo entre o que está acontecendo no Brasil agora. Mostramos o funcionário público, o empresário, o atravessador, o político, o juiz... Tem ainda o baixo clero, o cara que fica com as migalhas”
Fernanda não defende em nada sua personagem. Pelo contrário. A atriz define Maria Teresa como “uma mulher retrógrada e escravocrata”. “É uma loucura. Ela é pré-pré-pré qualquer cheiro de feminismo. Às vezes dá até medo (de falar o texto). Tem muita referência à questão do tratamento com escravos, por exemplo, e isso pode cair para o mau gosto. A história se passa num tempo em que não havia a censura do politicamente correto. Tem uma frase dela que é lapidar, uma coisa violentíssima. Ela dá um sarau, está reunida com umas senhorinhas, e fala: ‘Acho um absurdo tratar escravo como animal. Eu trato escravo como escravo mesmo’. Pensei em Brás Cubas. Foi uma hora em que Machado de Assis vestiu a pele da elite para denunciá-la. Há uma passagem da infância do Brás Cubas em que ele cavalga um escravo.”
Ficção versus realidade
Para Nero, a série mexe com o patético do ser humano sem medo de escancarar o racismo ou o machismo ainda presentes na atualidade. “A ficção está perdendo muita força com a realidade que estamos vivendo hoje. Os absurdos estão acontecendo a olho nu. Antigamente se falava: ‘Ah, isso só acontece em novela’. Hoje está mais do que provado que a novela ou o filme já foram ultrapassados. Não tem seriado americano que acompanhe o que está acontecendo politicamente e socialmente no mundo.”
Personalidades históricas como Dom Pedro I são citadas, mas só aparecem de relance. Em um momento de protesto, um dos personagens, o filho rebelde sem causa de Geraldo (papel de Johnny Massaro), inconformado com a situação do país, grita “Primeiramente... fora Pedro”.
“A ficção está perdendo muita força com a realidade que estamos vivendo hoje. Os absurdos estão acontecendo a olho nu. Antigamente se falava: ‘Ah, isso só acontece em novela’. Hoje está mais do que provado que a novela ou o filme já foram ultrapassados. Não tem seriado americano que acompanhe o que está acontecendo politicamente e socialmente no mundo.”
Em outra passagem, Debret é convocado a pintar um quadro da personagem de Fernanda, mas a deixa furiosa ao retratá-la como negra. “É uma paródia que encontra paralelo nos dias atuais”, acrescenta Mauricio Farias.
Bruno Mazzeo, que pensa em futuras próximas temporadas da série ambientadas em outros momentos históricos, admite ter mexido recentemente no roteiro para encaixar referências ao novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, por exemplo.
“Mas nem ele nem ninguém será citado diretamente. A gente fala de um sistema, de como o Brasil foi se formando”, diz Mazzeo, que recrutou professores de História para a equipe de roteiristas da série: “teremos algumas licenças, mas tudo foi embasado nos costumes da época.”
Para Fernanda, “Filhos da Pátria” é uma chance “de botar luz no caos que estamos vivendo”. “O Brasil de hoje é um Titanic afundando com as pessoas lutando por um barco salva-vidas. A gente está vivendo o recrudescimento.”
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