Duas produções nacionais previstas para estrear em 2016 chamam a atenção por explorar um gênero esquecido no audiovisual brasileiro: a ficção científica.
Ainda em fase de produção, “3%”, que deve sair no fim do ano, será a primeira série brasileira produzida pela Netflix. É uma espécie de distopia sobre um mundo dividido entre um lado devastado e outro desenvolvido. Os jovens menos favorecidos têm uma única chance de passar para o outro lado: um processo de seleção em que só 3% deles passam.
A premissa segue a linha de romances apocalípticos que vêm fazendo sucesso no mundo todo entre o público juvenil (pense em “Divergente” e “Jogos Vorazes”). O potencial já vinha sido percebido pelos jovens idealizadores da série, que foi criada por Pedro Aguilera para um edital público para a produção de uma ficção voltada para as classes C, D e E, em 2009. O episódio piloto, dirigido por Daina Giannecchini, Dani Libardi e Jotagá Crema, foi lançado há quase cinco anos, no YouTube, e vinha reunindo admiradores desde então. Mas a demora para conseguir parceiros não aconteceu por falta de tentativas.
Os produtores de “3%” vinham buscando investimento neste tempo todo – indício de que a ficção científica ainda é vista como um gênero arriscado. Talvez pela dificuldade técnica de produzi-lo, especularam os diretores; talvez pelo risco de não convencer o público, principalmente na tevê aberta.
Supermax
Já praticamente finalizada, “Supermax” – série da TV Globo que vai contar a história de doze participantes de um reality show ambientado numa prisão de segurança máxima na floresta amazônica – parece desafiar este cenário mirando ainda mais longe.
4 anos
foi o tempo que a série paulistana “3%” levou para encontrar um investidor. Depois de negociar com emissoras de tevê e de cogitar até levar a produção para fora do país, os criadores conseguiram levar a série para a Netflix.
A produção, prevista para estrear no segundo semestre, não apenas aposta na ficção científica como faz uma espécie de experimento de gêneros, conforme explica um dos autores, Marçal Aquino.
O escritor se uniu novamente a Fernando Bonassi, com quem escreveu os seriados “Força Tarefa” (2009-2011) e “O Caçador” (2014).
Aquino conta que eles tiveram a ideia de usar o confinamento de uma prisão de segurança máxima – logo complementada pelo diretor José Alvarenga Jr., que sugeriu o conceito do reality show. Quando resolveram que a história se passaria na floresta amazônica, o escopo de gêneros cresceu.
Séries de ficção científica como essas devem colaborar para uma crescente familiaridade do público com o gênero, que tensiona, centrifuga ou destila temas dos mais pertinentes em qualquer sociedade contemporânea
“Entendemos que usar um lugar isolado, desconhecido e cercado de mistérios permitiria brincar com outras coisas. E que havia ali uma abertura para brincar com gêneros: o horror, o terror, um toque místico, a ficção científica, se você quiser”, diz Aquino, em entrevista por telefone para a Gazeta. Ao time de roteiristas, foram acrescentados coautores especialistas em terror, fantasia e gênero policial, e o resultado é uma história híbrida, que entusiasmou o público que viu a apresentação da série na da Comic Con Experience, em dezembro de 2015.
“Uma coisa é certa”, diz Aquino. “A televisão brasileira ainda não tinha feito isso. Não é cabotinismo: eu nunca vi nada parecido na tevê brasileira. Mais que isso: na Globo, menos ainda”, diz o escritor, que destaca a importância da capacidade técnica da emissora para realizar algo neste gênero, que demanda uma boa dose de efeitos especiais. “É uma delicia poder criar algo que você sabe que vai ser encenado de forma consistente. Você não vê o fecho ecler do monstro”, brinca.
Gênero enfrenta série de desafios no Brasil, diz especialista
Professor de cinema na Unicamp e autor do livro “Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro”, Alfredo Suppia diz que o esquecimento do gênero na produção audiovisual do Brasil tem várias explicações.
A primeira seria puramente preconceito: a ideia de que a ficção científica seria um gênero “‘escapista’, ‘pouco sério’ ou ‘fantasia de criança’”.
Em entrevista por email para a Gazeta, Suppia também atribui a dificuldade a uma antipatia ao gênero, que seria “coisa de americano” – postura que Suppia chama de “complexo de vira-lata travestido de defesa contra modernidades impostas do estrangeiro”. E à ideia, para ele equivocada, de que o gênero sempre requer muitos efeitos especiais e grandes orçamentos.
Valores
Para Suppia, a ausência de uma tradição do gênero no cinema e na televisão do Brasil também diz algo sobre a falta de uma cultura relacionada à ciência e à tecnologia no país.
É uma área pouco valorizada, até como “valor norteador” da sociedade, diz Suppia – lembrando que a questão está ligada a um problema mais amplo de educação no Brasil. “Em resumo, [são desafios para i gênero no país] o desconhecimento da amplitude do gênero ficção científica, de suas matizes e variações, de suas ligações com as tradições da sátira e da utopia, o baixo valor percebido em ciência, tecnologia e inovação pelo grande público”, lista o professor. “E, finalmente, uma indústria audiovisual conservadora, retrógrada e intelectualmente muito limitada.”
O conservadorismo da indústria audiovisual também teria sua parcela de culpa, diz o professor, que espera que produções como “3%” e “Supermax” ajudem a desmistificar e a aumentar a familiaridade do público com o gênero.
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