Na manhã seguinte à noite em que Ramsay Bolton (Iwan Rheon) fez o inevitável em “Game of Thrones” e deu sua madrasta Walda (Elizabeth Webster) e seu filho recém-nascido para seus vorazes cães de caça comerem, dois leitores me escreveram em meu chat semanal trazendo questões e comentários que, tomadas em conjunto, me levaram a tentar definir um objeto notoriamente complicado: quanta violência é violência demais em “Game of Thrones”, ou em qualquer outra história ambientada em um mundo violento?
Tento, em minhas resenhas dos episódios, ser honesta a respeito da minha reação emocional enquanto escrevo, especialmente porque recapitulações do desenvolvimento de “Game of Thrones” têm de ser escritas em uma velocidade relâmpago e publicadas imediatamente, antes de eu ter tido a chance de realmente digerir um episódio. E isso significa admitir que, toda vez que Ramsay Bolton entra na tela em “Game of Thrones”, o episódio em questão ganha um ar venenoso para mim.
Mas um leitor me escreveu segunda-feira usando um argumento que eu mesma já empreguei, mas em um contexto algo diferente.
“Não entendo por que as pessoas ficam atônitas com a violência em ‘Game of Thrones’, o participante do chat argumentou. “As origens da série são a idade média, um dos períodos mais sangrentos da história – um feito que as pessoas conseguiram realizar sem pólvora! Aplaudo George R. R. Martin por não tentar embelezar essa era sangrenta (apesar de estar desapontado com o fato de ele consistentemente minimizar a importância da religião no cotidiano para as populações medievais).”
Sem ilusões
Concordo com isso – até certa medida. Parte do que faz da série de livros de Martin “As Crônicas de Gelo e Fogo” de “Game of Thrones” uma refrescante resposta ao modo de contar histórias de fantasia estabelecido são os clichês que deixam de lado. Fidalgos – como Sansa Stark (Sophie Turner) aprende para seu desgosto – não são inerentemente nobres. Reis podem ser bêbados, tolos ou pirralhos perversos. Casamentos arranjados não levam inerentemente a casais apaixonados e, na verdade, mulheres têm sua autonomia e seu direito de consentir a relações sexuais regularmente negados. A guerra é imunda e violenta. Pessoas normais realmente existem, e sofrem em virtude das decisões que os ricos e poderosos tomam sem levá-las em consideração.
Pessoas normais realmente existem, e sofrem em virtude das decisões que os ricos e poderosos tomam sem levá-las em consideração
Em alguns desses casos, a disposição em retratar extrema violência ou as sequelas de um ferimento ou da tortura presta um serviço direto ao objetivo de derrubar nossos sonhos reluzentes sobre idades do ouro passadas. Uma armadura pode aumentar o porte do homem que a veste, mas faz coisas asquerosas com o mesmo homem quando sua malha-de-aço é esmagada contra sua pele por um impacto.
E retratos de violência também podem ser úteis para explicar as regras do mundo ficcional para o espectador. A razão porque a decapitação de Ned Stark (Sean Bean) no final da primeira temporada de “Game of Thrones” é tão perturbadora não é apenas o sangue e a violência envolvidos. É que a morte de Ned nos deixa saber o que personagens como Cersei Lannister (Lena Headey) fizeram e estão dispostos a continuar a fazer para sobreviver. De maneira similar, ainda que particularmente não goste de assistir a Ramsay Bolton torturar e caçar pessoas, algumas cenas iniciais dessa natureza ajudam a estabelecer que tipo de comportamento será considerado tolerável se você tem sangue suficientemente nobre e é filho de alguém suficientemente frio, o que Roose Bolton (Micheal McElhatton) certamente é.
Limites
Mas o que acontece depois que a audiência já entendeu o ponto? Não consigo imaginar que haja algum espectador de “Game of Thrones” que não tenha entendido a essa altura que o seriado é ambientado em um mundo fantasticamente violento em que os ricos fazem coisas horríveis aos pobres e em que homens reivindicam domínio absoluto sobre os corpos das mulheres.
O seriado é ambientado em um mundo fantasticamente violento em que os ricos fazem coisas horríveis aos pobres e em que homens reivindicam domínio absoluto sobre os corpos das mulheres
Quando alguns de nós começam a chegar aos nossos limites, não é que estejamos pedindo para que as regras do mundo ficcional mudem, mas que não precisamos que os mesmos pontos sejam reiterados para nós de novo e de novo. Acredito que faz sentido emocionalmente e em termos de narrativa que Ramsay Bolton mate Walda e seu filho e não penso que “Game of Thrones” deveria ter feito algo diferente nessa parte da história.
Mas eu também não precisava necessariamente ver isso acontecer: essa parte do episódio de domingo poderia ter terminado com Ramsay ordenando que sua madrasta e irmão postiço fossem trazidos a ele. Ainda que as pessoas gostem de especular se personagens mortos permanecerão mortos em “Game of Thrones”, acredito que o resultado teria ficado relativamente claro sem a trilha sonora de carne rasgando e as tomadas prolongadas do crescente terror de Walda. (Da maneira muito semelhante, teria sido obviamente absurdo que a cerimônia de casamento de Sansa com Ramsay Bolton fosse outra coisa que não um mistério. Contudo, há muitas maneiras pelas quais comunicar a agonia que foi, inclusive simplesmente deixar Turner atuar.)
Violência gratuita
Dito isso, enquanto alguém que tem uma particular fraqueza por uma cena de luta bem coreografada, a pergunta mais geral de outra leitora me fez pensar a respeito da violência de que realmente gosto na cultura pop.
“Literalmente não consigo assistir”, essa participante do chat escreveu. “Quando mostram os cadáveres, tiroteios ou sangue, cubro meus olhos e meu marido tem de me dizer quando acabou. Acho que provavelmente assisti a apenas metade de ‘Deadpool’. O que as pessoas ganham vendo isso? Simplesmente não consigo entender. Nem um pouco. E gostaria de entender porque me preocupa o quão fácil é para as pessoas gostarem.”
Para a violência em “Game of Thrones” ou em qualquer outro lugar parecer criativamente vital ou moralmente chocante, tem de nos mostrar algo novo
Essa pode não ser uma resposta reconfortante, mas a primeira coisa que observaria é que a violência na cultura pop pode funcionar muito como a dança; há uma razão porque se fala em coreografia de luta. As cenas de luta em “Capitão América: Soldado Invernal” são rápidas, mas a fotografia e a coreografia dos personagens são tais que você pode ver cada movimento individual que os personagens fazem e entender seus respectivos pontos fortes e fracos. Elas são parte da construção dos personagens; você pode ver que o Soldado Invernal (Sebastian Stan) foi reduzido a um frio instinto assassino, enquanto Steve Rogers (Chris Evans) quer desesperadamente incapacitá-lo, em vez de lhe tirar a vida.
E admito que, quando é feita do jeito certo, aprecio a maligna criatividade de uma sequência mocinho-metralha-bandidos. Não há nada moralmente redentor na sangrenta abertura de “Deadpool” (e admito totalmente ter fechado meus olhos durante a sequência de empalamento do filme, porque essa é um ponto particularmente sensível para mim) ou no tiroteio completo que emerge dela. Mas vejo algo assim como uma espécie de escultura cinética, e não posso deixar de me impressionar com toda o esforço que foi dedicado a decidir como pessoas e objetos se moveriam através do espaço. É uma resposta fria, mas verdadeira.
Algo como a sequência do Casamento Vermelho em “Game of Thrones” funciona dessa forma para mim. O massacre violento de Robb Stark (Richard Madden), sua família e os guerreiros a seu serviço é algo feio de se assistir. Mas é uma eficaz construção de personagem, amarrando muitos ressentimentos que estavam lentamente fermentando com a dissolução de algumas alianças sempre instáveis, ilustrando quão longe um personagem como Roose Bolton irá quando enxergar uma vantagem estratégica e pondo o tijolo final na destruição da família de Catelyn Stark (Michelle Fairley). E esses detalhes dos personagens funcionam porque é uma cena tão astuta, cuidadosamente coreografada e que faz um excelente uso da claustrofobia provocada pelo salão de Walder Frey (David Bradley).
Repetição
Mas assim como “Game of Thrones” já muito bem definiu há tempos as regras de seu mundo por meio de cenas chocantes de violência, também definiu seus personagens muito bem por meio das mesmas técnicas. Há exceções: assistir a Olly (Brenock O’Connor) mergulhar uma adaga em Jon Snow (Kit Harrington) na última temporada foi um testamento eloquente a ambos o trauma que ele sofreu e a influência venenosa de Ser Alliser Thorne (Owen Teale), que organizou um motim contra Jon, então Senhor Comandante da Patrulha da Noite.
Mas assistir a Ramsay Bolton esfaquear seu pai e soltar seus cães de caça mais uma vez não me mostra nada que eu já não tenha visto, seja enquanto arte ou enquanto construção do mundo ficcional ou enquanto desenvolvimento do personagem (ainda que haja um paralelo artístico entre a maneira como Ramsay apunhala Roose e a maneira como Roose apunhalou Robb Stark). Para a violência em “Game of Thrones” ou em qualquer outro lugar parecer criativamente vital ou moralmente chocante, tem de nos mostrar algo novo.
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