Opinião
Criatividade sensibilidade e irreverência marcam CD
Se algum retoque fosse necessário em Nó na Orelha, talvez se aplicasse ao nome do CD. Porque o que envolve a "orelha" deste lançamento é apenas o começo de um laço que vai percorrer os canais auditivos até se atar, de fato, ao cérebro de quem o ouve. É onde, de fato, Criolo dá um nó.
Dá um nó porque o MC paulistano subverte padrões tradicionais do rap de um modo que o resultado final acaba sendo... rap! Explica-se.
Ao longo do disco, Criolo transita do afrobeat de "Bogotá" para uma pegada mais soul/jazz em "Subirusdoistiozin"; desloca-se do samba de "Linha de Frente" para algo mais reggae em "Samba Sambei". Cabe até um bolerão: "Freguês da Meia-Noite". "Não Existe Amor em SP", por sua vez, é de uma melancolia à la Portishead. Tudo num mesmo álbum.
O que dá a liga, o fio (do nó) que amarra essa mistura toda, é o rap. Não em suas tradicionais batidas e poesias rimadas (o CD também traz raps mais convencionais), mas na atitude: o sentimento e o olhar sobre o mundo das ruas devidamente convertidos em arte por quem vive essa realidade.
Proposta ousada, resultado brilhante. Por mais que o estilo musical varie de uma faixa para a outra, tem-se a nítida sensação de se estar escutando a mesma obra, o mesmo artista. Enfim, a mesma ideia, só que explorada de diversas maneiras.
A criatividade rítmica encontra par nas letras. Nó na Orelha tem seus momentos de "tapa no ouvido" quando, por exemplo, Criolo denuncia, em "Subirusdoistiozin", que covarde é "quem tem tudo de bom e fornece o mau pra favela morrer".
De ímpar tem a sensibilidade, como quando fala da decadência das relações humanas em "Não Existe Amor em SP", metrópole descrita, por um genuíno filho dela, como "flores mortas num lindo arranjo", onde "os bares estão cheios de almas tão vazias, a ganância vibra, a vaidade excita".
Em "Mariô", há espaço para reverência (a Chico Buarque, que "avisara: a roda não vai parar") e à irreverência: "Di Cavalcanti, Oiticica e Frida Kahlo têm o mesmo valor que a benzedeira do bairro". Para Criolo, do mesmo modo como estilos musicais distintos podem ser uma coisa só, pessoas distintas têm o mesmo valor e, em essência, são igualmente a mesma coisa: seres humanos. Isso é atitude rap. (DA) GGG
Serviço
Nó na Orelha. Independente.
Preço médio: RS$ 20 (CD) e R$ 65 (vinil). Download gratuito: http://criolo.art.br/criolononaorelhahotsite/
Por volta de meio-dia, quinta-feira última, o rapper paulistano Kleber Cavalcante Gomes ainda estava espantado com a catarse ocorrida durante sua apresentação em Curitiba, cinco dias antes. "Mano, foi impressionante!", comentou à reportagem da Gazeta do Povo, por telefone, em tom pausado e suave. Nem de longe parecia a mesma pessoa que soltara a voz no último sábado e que, em determinado momento, franqueara o acesso ao palco a quem dos mais de dois mil presentes quisesse cantar junto o vídeo pode ser visto no YouTube. Criolo, nome dele na arte, anda mesmo revolucionando o rap.
O auge é o lançamento de seu segundo CD, previsto para o fim deste mês, mas já disponível para download gratuito. Nó na Orelha é daqueles raros casos de disco que já nasce aclamado. Entre os aficionados por hip-hop, tudo em torno da produção e gravação causava burburinho. Sabia-se que naquela fábrica estava sendo composto um experimento capaz de alterar paradigmas musicais do movimento. E mudou.
Em dez faixas, Criolo viaja por ritmos distintos que, ao mesmo tempo, formam um mesmo conjunto harmônico por carregarem, todas as músicas, a atitude do rap. "É mostrar um monte de coisa errada, que incomoda, e de mostrar também o quanto o nosso povo é lutador", define.
Nó na Orelha também deixa de lado os tradicionais samplers e batidas eletrônicas do rap. No lugar, faz uso de instrumentos convencionais o que vai ser mostrado no show de lançamento do CD, no começo do mês que vem, em São Paulo. Criolo dividirá o palco com 15 músicos, entre eles duas backing vocals. Dá-lhe guitarra, bateria, violão, cavaquinho, baixos elétrico e acústico, teclados, sax, flauta, trompete, viola e violino. E, claro, o toca-discos do DJ. Afinal de contas, é rap.
O disco é totalmente autoral. A produção é de Marcelo Cabral e Daniel Ganjaman, que traz no currículo parcerias com Planet Hemp, Nação Zumbi e o falecido rapper Sabotage, entre outros.
Nascido na zona sul de São Paulo há 35 anos, filho de um metalúrgico com uma professora, Criolo já vendeu calçados em lojas, cocadas na rua e roupas de porta em porta. Chegou a cursar Artes e Pedagogia, mas não concluiu os cursos. Aos 18, começou a dar aulas na rede pública de ensino.
Nessa época, já militava no hip-hop. Anos mais tarde, em 2006, lançou Ainda Há Tempo, disco de rap mais tradicional e que já mostrava diferenciados talento e sensibilidade. Era, então, Criolo Doido. Encurtou o nome, diz ele, "porque ainda precisa fazer muita coisa para ser doido". "No bom sentido, é claro", adverte.
É também criador da chamada Rinha dos MCs, evento que tem como principal atração as batalhas de improvisação entre rimadores, mas também serve de espaço para a difusão da cultura hip-hop. Carismático e hábil com o microfone em mãos, Criolo vira um autêntico "showman" quando está com os holofotes acesos sobre si.
Ainda demonstrando empolgação com show de sábado passado em Curitiba, Criolo conversou sobre o novo disco com a Gazeta do Povo. Leia os principais trechos:
Que elementos unem estilos sonoramente tão distintos?
O rap existe para manifestar algo que a gente pensa. Ele nasceu dessa necessidade, sobretudo no Brasil. Existe uma necessidade de mostrar um monte de coisa: um monte de coisa errada, que incomoda, e de mostrar o quanto o nosso povo é lutador. Isso é a atitude rap, indagar essas questões, expressar o modo como você pensa. Musicalmente falando, Nó na Orelha, de certa forma, quebra um pouco do preconceito ainda ligado ao rap?
O rap é música, ponto. É uma vertente musical mundial. Se fala de preconceito, fala. Os partideiros do samba levavam borrachada, do mesmo jeito que os MCs. Discutem se o seu novo disco é rap, não é, se é um novo tipo de rap. Essa necessidade de rotulação te incomoda?
Lógico que não. Sei lá, eu faço o que vem ao meu coração. Se a pessoa está falando algo positivo, é algo para me fortalecer, ótimo. Mas é sempre bem vinda uma crítica também, a gente consegue entender onde tem de melhorar. São muitos anos como morador e um observador da periferia. Como a arte nela tem evoluído?
Sempre fizemos com amor, dignidade e compromisso com a verdade. Aquele rapaz que escrevia, que declamava poemas com os amigos na escola, na praça ou em sua casa, que tocava discos nas vitrolas de madeirinha, para escutar, para fazer o som dele, ele sempre fez arte com o coração. E por que aparece mais agora?
O pessoal só demorou para enxergar a gente. Existem os grandes meios de comunicação, e eles têm a sua importância. Mas, com a internet, em qualquer lugar que você for tem uma lan house. O jovem de qualquer localidade procura o que quer e manda suas mensagens ao mundo. Nosso povo é um povo lindo. Somos uma massa humana que cada vez mais está se manifestando com essas ferramentas. A respeito de "Não Existe Amor em SP", essa falta de amor a que você se refere é exclusividade de São Paulo ou existe também em outras capitais e nas cidades grandes, em geral?
É um recorte que eu faço de alguns momentos em que nós, seres humanos, vivemos. Por muitas vezes, até sem querer, cometemos equívocos, magoamos as pessoas, não enxergamos o mundo ao redor. Sou morador de São Paulo e senti isso. Mas os equívocos acontecem em qualquer lugar que seja. No fundo, eles são apenas para chamar atenção, pois tem um monte de gente fazendo coisas boas também. E o show em Curitiba?
Cara, preciso mandar um salve pro pessoal daí, foi sensacional toda aquela gente subindo no palco e cantando comigo. Todos os que conheço e que tive o prazer de conhecer em Curitiba têm muita seriedade com seu trabalho. É sempre um prazer estar aí, cantar aí. Sou recebido sempre com muito respeito e muito carinho.
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