Um baú carregado de referências

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Ler a Lanterna Mágica, a autobiografia de Ingmar Bergman (1918-2007), numa edição elegante da Cosac Naify, é mais ou menos como descobrir um baú carregado com referências dos filmes do cineasta sueco. Uma impressão dominante na primeira metade do texto, em que o Bergman fala muito de sua infância (embora a narrativa não seja linear e ele dê saltos temporais durante o livro inteiro), é de que você está lendo o filme Fanny e Alexander.

O longa-metragem de 1982 (são 3 horas e 8 minutos de duração e mais tarde saiu uma versão do diretor com 5 horas e 12 minutos) costuma ser apresentado como "uma enciclopédia bergmaniana", um sumário dos temas de sua filmografia. Numa cena, o menino Alexander está sozinho no casarão da avó e busca abrigo debaixo da mesa da sala ricamente mobiliada.

Em um dos cantos do ambiente, há uma estátua branca de um corpo nu. Como que por mágica e para o espanto de Alexander, a estátua começa a se mexer. Ele arregala os olhos: ela está viva. Em outro momento, o garoto observa uma sombra que se move, arrastando uma foice atrás de si. A Morte que espreita o jovem, que parece recuar com medo.

Na história, o pai de Alexander morre por problemas de saúde e sua mãe casa com um pastor protestante. A mudança desencadeia uma quantidade sufocante de conflitos – da mãe com os filhos, das crianças entre si e de Alexander com ele mesmo.

Bergman publicou Lanterna Mágica cinco anos depois de Fanny e Alexander. No livro, ele narra o episódio em que passou um domingo de primavera na casa da avó. Porque estava com dor de garganta, permitiram que ele não fosse ao culto. "Minha cabeça não alcança a altura da enorme mesa da sala de jantar; apoio as costas em uma de suas pernas arqueadas." Ele descreve os móveis em detalhes, as cadeiras, o relógio enorme que vai do chão ao teto ornamentado. "Posso distinguir uma mulher branca, nua, sem os braços. Ela está levemente inclinada para a frente e me olha com um leve sorriso." A imaginação do menino começa a se insinuar, a mesma imaginação que colocava Bergman em apuros por mentir descaradamente para quem quer que fosse.

Sobre uma cômoda da sala, há um relógio dentro de uma redoma e o mostrador é ladeado por um flautista e uma dama de saia branca. Debaixo da mesa, o mundo imaginado por Bergman entra em movimento. "Agora, a luz do sol abrasa o lustre de cristal e forma prismas, toca o quadro com as casas à margem do lago, acaricia a brancura da estátua. Os relógios anunciam as horas, a jovem dourada dança, o rapaz toca, a dama nua vira a cabeça e acena para mim; agora a Morte arrasta sua foice sobre o tapete de cortiça no escuro hall da entrada, posso vê-la, seu crânio amarelo e o sorriso, sua figura delgada e escura contra os vidros da porta principal."

Você lê o trecho e tem certeza de que as memórias de infância inspiraram os filmes do diretor sueco, ou que ao menos Fanny e Alexander, responsável pelo terceiro Oscar de filme estrangeiro conquistado pelo cineasta (A Fonte da Donzela e Através do Espelho foram os outros dois, em 1960 e 1961). Você tem certeza ainda que as memórias sejam mais ou menos carregadas de invenção, de lembranças alheias e de perdas.

Não tão rápido, diria Maaret Koskinem, especialista na obra de Bergman e dona de uma ideia fascinante. Ela começa citando o exemplo de como a morte da mãe do diretor, citada em Lanterna Mágica, teria inspirado uma cena de A Hora do Amor, o seu único filme produzido nos Estados Unidos. Então Maaret rebate a noção de que o fato inspirou a ficção e defende exatamente o inverso. "Talvez o escritor da autobiografia [Bergman, no caso] tenha permitido que uma cena ficcional alterasse ou ‘contaminasse’ a memória de um evento ocorrido na vida real", diz a pesquisadora. Ela foi citada por Jan Holmberg, presidente da Fundação Ingmar Bergman ouvido pela reportagem (leia entrevista nesta edição).

"O mito, o homem", um texto de Holmberg publicado na página da fundação, na internet, explora exatamente os pontos de contato entre a vida e obra do autor de Persona. Em meio a várias observações precisas, ele diz que o próprio Bergman gostava de brincar com a percepção do público sobre o que ele colocava de si nas histórias que contava.

"Tudo que sabemos sobre a vida de Bergman é o que ele quis nos contar", diz Holmberg. No começo de carreira, o diretor chegou a publicar uma "auto-entrevista", fato que ilustra muito bem a destreza com que ele manipulava sua figura pública. A farsa só foi desmascarada porque ele mesmo decidiu revelar o episódio e se divertiu tremendamente com isso.

"Embora se exponha muito em seus filmes e textos, Ingmar Bergman era um homem recluso que raramente aparecia em público", afirma Holmberg. "Essa combinação fascinante fez dele uma pessoa sobre a qual muitos achavam saber bastante, embora ele permanecesse um mistério. A questão de quem foi Bergman só pode ser respondida da forma que ele próprio respondeu ao longo de sua vida: ele era um e muitos ao mesmo tempo", salienta Holmberg.

Bergman é então muito mais engenhoso do que se podia pensar. Em vez de criar uma obra inspirada na sua vida, ele criou sua vida – possivelmente mais de uma vez – e amarrou a obra às suas invenções, agindo sobre a imaginação do público de um jeito impensável, dentro e fora do cinema, do teatro e da televisão. Nesse contexto, Lanterna Mágica seria mais uma de suas ficções. Uma parte do seu legado que interage com todo o resto e que também age sobre ele.

"Era difícil distinguir entre o que eu fantasiava e o que era considerado real", escreve Bergman na autobiografia. Ao ver os filmes dele, o mesmo pode ser verdade para você.

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Entrevista

Público de hoje busca mais o Bergman escritor e dramaturgo

Uma das coisas mais legais a respeito da página da Fundação Ingmar Bergman na internet é a forma como os responsáveis administram o acervo e o modo como falam dele. Filmes, documentos, fotografias, objetos, peças teatrais e rascunhos do diretor estão sob a responsabilidade da fundação.

Os textos são sérios, mas têm leveza – uma qualidade incrível se você pensar na densidade dos filmes e dos temas abordados por eles. Às vezes, um senso de humor sutil aparece em alguns textos, ao menos na versão em inglês.

Vale dar uma olhada no guia para "navegar pela galáxia" de Bergman, discutindo a relação do diretor com a Suécia, com a morte, com a família e outros dez tópicos. É esclarecedor.

Depois de trocar e-mails com o presidente da fundação, Jan Holmberg, a impressão é de que o temperamento dele se reflete no site. Nas questões a seguir, ele fala sobre como o mundo de hoje não tem nada a ver com Bergman e se diverte ao imaginar o que ele teria a dizer para a geração Facebook.

A obra de Ingmar Berg­man é muito introspectiva e lida com problemas que o mundo de hoje se esforça para ignorar – morte, solidão, autoconhecimento. Qual é o lugar de Bergman neste cenário?

Sim, concordo: parece que a época atual está menos interessada nos temas que ocuparam Bergman... E, é claro, várias temáticas de seus filmes estão relacionadas à época, marcada pela Guerra Fria e pela ameaça de guerra nuclear. Assim como o Existencialismo e o film noir, Bergman é resultado da ansiedade do ­pós-Segunda Guerra Mundial.

Ainda assim, as principais questões de hoje não são menos ameaçadoras: os desafios que envolvem o clima, as guerras incompreensíveis e a recessão econômica global. Não são tempos felizes. Mas eles não justificam uma redescoberta dos filmes de Bergman. Parece que o cinema é uma forma efêmera de arte e cada geração precisa de seus intérpretes. Não estou dizendo que o interesse em Ingmar Bergman diminuiu, pelo contrário! Mas, agora, parece que as pessoas buscam mais o Bergman escritor e o dramaturgo. É o que provam as quase 40 adaptações de suas peças realizadas por ano no mundo todo.

Na sua opinião, o que Bergman, um homem que viveu décadas isolado em uma ilha, tem a dizer sobre o ser humano para a geração das telas sensíveis a toque e do Facebook?

Hahaha, sim, essa é uma boa pergunta! E sim, acredito que existem diferenças marcantes entre a geração digital e a de Ingmar Bergman, que se recusava até mesmo a trabalhar com uma máquina de escrever velha! Ele escreveu à mão todas as suas peças, da mesma forma que August Strindberg [1849-1912] fez antes dele. Para falar a verdade, acho que esse fato poderia servir de exemplo para a geração multitarefas: os filmes de Bergman não foram feitos para serem vistos em um telefone celular, enquanto você joga um videogame, lê um blog e atualiza o Facebook. O Sétimo Selo ou Persona devem ser desfrutados em uma sala de exibição. O que é ainda mais difícil nos dias de hoje. É o que torna atraente a ideia de se sentar para ver uma retrospectiva Ingmar Bergman, com os filmes sendo exibidos da forma como foram concebidos pelo diretor.

No texto "O Homem, o Mito", publicado no site da Fundação, você afirma que "é difícil separar a vida e a obra de Ingmar Bergman, e isso para dizer o mínimo". Poderia, por favor, falar um pouco mais sobre isso?

Devemos sempre ser cuidadosos com interpretações biográficas simples. Não compreendemos melhor Shakespeare ao aceitar qualquer uma das especulações em torno de sua figura histórica. Isso como regra geral. No caso de Ingmar Bergman, ele é mesmo um artista cujo trabalho tem sido analisado à luz de supostas informações sobre sua vida. O problema é que quase tudo o que sabemos de sua vida foi ele mesmo que escolheu contar. E ele não é confiável! A Lanterna Mágica é o exemplo perfeito de como Bergman apresenta uma paisagem sinuosa de seu passado, parecendo ignorar se os episódios ocorreram de fato ou não. E é, por isso, que o livro é literatura de primeira. Como o próprio Bergman disse, ele era um mentiroso profissional.

Jan Holmberg, presidente da Fundação Ingmar Bergman, na Suécia.