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O norte-americano D. W. Griffith (1845-1948), um dos pioneiros da sétima arte, escreveu sobre o escritor britânico Charles Dickens (1812-1870), em um de seus muitos ensaios, que o autor de Oliver Twist e Grandes Esperanças teria sido, à sua época, um precursor da narrativa cinematográfica. Para o diretor de Intolerância, a forma como o inglês conduzia o leitor, por meio de descrições detalhadas e extremamente visuais, se assemelhava à habilidade que os filmes teriam de transportar o espectador a uma outra dimensão, onde é possível atravessar barreiras físicas, como portas e paredes, e alçar vôo, enxergando a realidade de uma posição inatingível pela anatomia humana.

A reflexão de Griffith, embora feita no início do século 20, vem à mente quando se lê o primeiro capítulo de Caminhos Cruzados, obra do escritor gaúcho Erico Verissimo, que acaba de ser reeditada pela Companhia das Letras, dentro das comemorações aos cem anos do autor da saga meridional O Tempo e o Vento. Ao descrever o despertar de um novo dia em uma ruela da classe média porto-alegrense, Verissimo proporciona ao leitor um verdadeiro espetáculo sinestésico e de extrema visualidade.

"A carroça do padeiro passa estrondando, fazendo tremer a quietude da cidade afundada; mas um instante depois o seu vulto e seu ruído se dissolvem de nova na cerração" e "Agora nas fachadas escuras começam a brotar olhos quadrados e luminosos" são algumas das construções de Verissimo que possibilitam uma visão privilegiada de um momento ao mesmo tempo único e corriqueiro. Aos poucos, o autor nos leva para o interior do quarto onde dorme um dos personagens da história, o erudito e solitário professor Clarimundo.

Como o crítico literário Antônio Cândido diz no prefácio, escrito especialmente para a nova edição do livro, Caminhos Cruzados é um legítimo representante do boom vivido pela ficção brasileira na década de 30. Da mesma forma que as obras do baiano Jorge Amado e do alagoano Graciliano Ramos permitiam à intelectualidade do sudeste brasileiro ver, sentir e compreender a distante realidade do Nordeste, Verissimo revelava em sua obra o extremo sul do país e, mais especificamente em Caminhos Cruzados, o cotidiano urbano de uma de suas maiores cidades, Porto Alegre.

A capital gaúcha neste que Cândido chama de "um dos melhores livros de Érico Verissimo" é mais do que cenário, ou pano de fundo. É um personagem, ainda que o autor tenha a cautela de jamais nomeá-la. Ao descrever cinco dias na vida de um grupo heterogêneo, mas interligado de personagens, o escritor constitui um retrato vivo da sociedade da época, com todas as suas vicissitudes e idiossincrasias.

Não há como deixar de perceber nas entrelinhas de Caminhos Cruzados o posicionamento ideológico reformador de Verissimo. Ele constrói um painel social nos qual os personagens por vezes resvalam na caricatura, como é o caso de dona Dodó Freire Leite, fina senhora da sociedade gaúcha que visita o tuberculoso Maximiliano, já em fase terminal da doença, como uma forma de provar ao mundo – e, sobretudo, a si mesma – que pode ser caridosa e abnegada.

Apesar disso, o modernista Caminhos Cruzados, por não ter começo, meio e fim, e adotar um saboroso e envolvente tom de crônica de costumes, no qual se misturam comédia, drama e farsa, nos permite uma viagem fascinante à sociedade ao mesmo tempo urbana e provinciana da Porto Alegre dos anos 30. É um livro e tanto.

Bibliografia

* Já foram reeditadas pela Companhia das Letras os seguintes títulos de Érico Verissimo:

Ana Terra

O Arquipélago – Vol.1

O Arquipélago – Vol.2

O Arquipélago – Vol. 3

As Aventuras do Avião Vermelho

Caminhos Cruzados

Um Certo Capitão Rodrigo

Clarissa

O Continente – Vol. 1

O Continente Vol. 2

Do Diário de Sílvia

Incidente em Antares

Música ao Longe

Olhai os Lírios do Campo

Outra Vez os Três Porquinhos

O Retrato – Vol. 1

O Retrato – Vol. 2

Rosa Maria do Castelo Encantado

Os Três Porquinhos Pobres

O Urso com Música na Barriga

A Vida do Elefante Basílio

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