Nas fronteiras longínquas da literatura, ali onde os gêneros se esfumam e as certezas vacilam, resiste a crônica. Nem todos se arriscam a praticá-la. Para alguns, a crônica é um "gênero menor". Para outros, não é literatura, é jornalismo. Há quem acredite que seja um gênero de circunstância, datado oportunista. Todas as suspeitas recaem sobre ela.
Definida pelo dicionário como "narração histórica, ou registro de fatos comuns", a crônica ocupa um espaço fronteiriço, entre a grandeza da história e a leveza da imaginação. Posição instável, em que a segurança oferecida pelos gêneros literários clássicos já não funciona. A crônica confunde porque nunca está onde não devia estar.
Supõe-se, em geral, que os cronistas digam a verdade. Não só porque crônicas são publicadas na imprensa, lugar dos fatos e das notícias, mas também porque elas costumam ser narradas na primeira pessoa, e o Eu sempre evoca a idéia de confissão.
Contudo, e esse é seu grande problema, mas também sua grande riqueza, a crônica é um gênero literário. Não é ficção, não é poesia, não é crítica, e nem ensaio, ou teoria é crônica. Nossos primeiros grandes cronistas Alencar, Machado, Bilac, João do Rio foram, antes de tudo, grandes escritores.
No século 20, a crônica se afirma como gênero autônomo. Nas mãos de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos Oliveira, Sérgio Porto, Fernando Sabino, ela se torna o lugar da liberdade. Quando escreve uma crônica, o escritor pode ser ligeiro, pode ser informal, pode dispensar a originalidade, desprezar o estilo pode tudo. Na crônica, ainda mais que na ficção, o escritor não tem compromissos com ninguém.
Pode falar de si, relatar fatos que realmente viveu, fazer exercícios de memória, confessar-se. Mas pode (e deve) também mentir, falsificar, imaginar, distorcer. A novidade não está nem no apego à verdade, nem na escolha da imaginação. O cronista é um agente duplo: trabalha, ao mesmo tempo, para os dois lados e nunca se pode dizer, com segurança, de que lado ele está.
Na verdade, o cronista não está em nenhuma das duas posições, está "entre" elas. Ocupa um espaço limítrofe e é por isso que o cronista inspira, em geral, muitas suspeitas. Os jornalistas o vêem como leviano, mentiroso, apressado, irresponsável. Os escritores acreditam que ele é preguiçoso, interesseiro, imprudente, até venal. Uns o tomam como uma ameaça ao rigor dos fatos que norteia o jornalismo. Outros, como um perigo para o primado da fantasia que define a literatura.
O cronista sofre, assim, dos estigmas negativos que cercam a figura do forasteiro aquele que sempre desperta desconfiança e em quem não se deve, nunca, acreditar inteiramente. Vindo sabe-se lá de onde, inspira uma admiração nervosa. Errante, ele nos leva a errar também em nossas avaliações, em nossas suposições. Uns o vêem, por isso, como um trapaceiro; outros, mais espertos, aceitam aquilo que ele tem de melhor a oferecer: a imprecisão.
Terreno da liberdade, a crônica é também o gênero da mestiçagem. Haverá algo mais indicativo do que é o Brasil? País de amplas e desordenadas fronteiras, grande complexo de raças, crenças e culturas, nós também, brasileiros, vacilamos todo o tempo entre o ser e o não-ser. Somos um país que se desmente, que se contradiz e que se ultrapassa. Um país no qual é cada vez mais difícil responder à mais elementar das perguntas: Quem sou eu?
Gênero fluido, traiçoeiro, mestiço, anfíbio, a crônica torna-se, assim, o mais brasileiros dos gêneros. Um gênero sem gênero que, a cada pedido de identificação, fornece sempre uma resposta diferente. Grandeza da diversidade e da diferença que são, no fim das contas, a matéria-prima da literatura.
José Castello é crítico literário e cronista, autor de A Literatura na Poltrona e do romance Fantasma (ambos pela Record).
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"Eu me considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o que houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que eu acabasse a crônica para ficar com ela.Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me aceitando. Levei-a, em meus braços, apoiada em meu peito. Apertei-a com força, sabendo que ela seria maior do que a saudade."
Trecho de "Mila", de Carlos Heitor Cony (1995).
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