Reedição
Recado do Nome Leitura de Guimarães Rosa à Luz do Nome de Seus PersonagensAna Maria Machado. Companhia das Letras, 192 págs., R$ 26.
"Que há em um nome?", desafia Julieta. "O que chamamos rosa, sob outra designação, teria igual perfume". E Rosa replica, na voz de Riobaldo: "Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe". Partindo de observações como essas, Ana Maria Machado propõe, em Recado do Nome, uma leitura de Guimarães Rosa centrada na hermenêutica dos nomes.
Tese de doutorado elaborada, quatro décadas atrás, sob a orientação e a inspiração de Roland Barthes (que lançara Proust et les Noms em 1967), sua publicação foi a princípio cercada de entusiasmo. No prefácio à edição de 1976, Antônio Houaiss atentava para os "requintes experimentais e de contraprova" da autora, exemplo "talvez sem precedentes na história da leitura crítico-literária".
Reeditado agora pela Companhia das Letras, Recado do Nome traz, além da análise de A. Houaiss, um segundo prefácio no qual Leyla Perrone-Moisés, reafirmando as qualidades do ensaio, lamenta a pouca atenção a ele dada nos meios universitários.
Queixas à parte, a tese defendida em Recado do Nome é a de que os nomes próprios não têm, em literatura, apenas função indicativa, "realista", sem qualquer intenção de significar algo mais. O emprego de uma onomástica alegórico-simbólica, diz a autora, não é recurso exclusivo de narrativas simplórias e maniqueístas, como preconizava certa vertente teórica.
Buscando paralelos em Flaubert, Charlotte Brontë e Joyce, Ana Maria Machado defende que, na obra rosiana, o recurso chega a ultrapassar alegoria, convertendo-se em fator coesivo central, com papel decisivo na gestação da obra escrita. Dito de outro modo, Guimarães Rosa, fiel à tradição que vai de Platão a Plotino e Santo Agostinho, concebe a temporalidade narrativa como uma imagem móvel da eternidade, esta simbolizada num subjacente e complexo sistema de arquétipos verbais.
Recursos
Mais do que piada lexical ou veículo de caracterizações sumárias, a onomástica rosiana atuaria como matriz dos sentidos atualizados pelo texto, recorrendo para isso a uma ampla gama de recursos que inclui a polionomásia (personagem com vários nomes), a polissemia (nomes que sintetizam sentidos diversos, às vezes antitéticos), a etimologia, o neologismo e até a pura e simples reverberação sonora, pontuada estrategicamente ao longo do texto.
Sem dúvida, não passa despercebido ao leitor o incessante fluir de um Rio-baldo, feito Urutu depois de ter sido Tatarana. Nem o ambíguo e dorido dom de si figurado em Reinaldo-Diadorim, afinal Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. Os exemplos são diversos. E cada nome, evocado no instante exato, pontua, qualifica e movimenta a narrativa.
A tese, penso, fica mesmo de pé, aliás apoiada no próprio escritor, para quem "a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História", isto é, para além do tempo. Em todo caso, a frequência com que a crítica, tanto antes quanto depois de Recado do Nome, explorou as sutilezas onomásticas de Guimarães Rosa contribui para obscurecer a originalidade do ensaio.
Uma análise em alguns aspectos semelhante à de Ana Maria Machado (mas que, a meu ver, vai ainda mais longe) é a de Consuelo Albergaria no livro Bruxo da Linguagem no Grande Sertão, publicado pouco depois de Recado do Nome. De posse da tese de Maria Machado, Consuelo remete os procedimentos criativos de Guimarães Rosa às fontes doutrinais que os inspiraram, estabelecendo conexões entre técnica literária e cosmovisão filosófica.
Tal como os clássicos O Roteiro de Deus, de Heloisa Vilhena, e O Brasil de Rosa, de Luiz Roncari, os ensaios de Ana Maria Machado e Consuelo Albergaria são reflexões que aprofundam a leitura: são releituras, não guias introdutórios. O leitor preocupado em não se perder nessas veredas pode recorrer ao Roteiro de Leitura da professora Kathrin Rosenfield (UFRGS), uma austríaca que aprendeu português lendo Guimarães Rosa.
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