Quem leu a contundente e autobiográfica graphic novel Retalhos sabe o quanto o norte-americano Craig Thompson mais uma vez levou uma história em quadrinho a um novo patamar em Habibi, ao mesmo tempo em que tentou livrar-se do preconceito com o islã acumulado pela sua formação rigorosamente cristã e da culpa pós 11 de Setembro, ponto de partida para a criação desta fábula oriental que o próprio autor não nega.
Para compor a história de uma mulher e um garoto entregues à própria sorte Dodola e Zam, respectivamente que cuidam um do outro em um velho navio atolado no deserto, Thompson fez uma jornada ao Marrocos, em 2004. A limitação da viagem reflete sua limitação sobre o tema: sem conhecer a língua árabe, o Corão e muito pouco sobre quaisquer outros aspectos relevantes, fez uma apropriação cultural de alguns elementos que se assemelha ao gesto de passear por um bosque recolhendo flores: um pouco daqui, um pouco dali, apenas amostras suficientes para emular uma total imersão no universo árabe.
Pode-se dizer, ainda assim, que Thompson fez um brilhante trabalho nesse sentido. Sua apreciação pela geometria e matemática que circundam a mitologia islâmica e a maestria com que domina a caligrafia, resultando em magníficos desenhos em preto e branco, fazem de Habibi não apenas uma das graphic novels visualmente mais bonitas que o mundo verá desde Will Eisner como também um meio termo sólido e completamente válido entre o didatismo e a sátira sob uma perspectiva orientalista sendo o oriente como uma invenção exótica do olhar ocidental , da qual o autor não conseguiria escapar nem se tentasse.
Dodola e Zam tomam caminhos diferentes. A bela jovem, após doar seu corpo aos beduínos em troca de comida, é capturada pelo sultão da cidade fictícia de Vanatólia, onde se torna a mais interessante mulher do harém, caindo em desgraça logo depois. Enquanto isso, Zam, sentindo-se abandonado e culpado pelos pensamentos sujos por Dodola, que chegam junto com sua adolescência, procura salvação na cidade e acaba sendo abrigado por um grupo de eunucos. A história dos dois passa por momentos antagônicos simultâneos, de sexualização e castração, privação e abundância, fé e descrença, enquanto ambos procuram se reencontrar.
A referência clara ao Livro das Mil e Uma Noites (o sultão pede para que Dodola o satisfaça por 70 noites seguidas sem entediá-lo, sob punição de morte), e as pequenas histórias comuns tanto à religião islâmica quanto ao cristianismo fazem uma intertextualização com o que há de mais rico na literatura oriental, mas peca pelo recorte estereotipado, seja sobre a culpa masculina, seja sobre a ideia orientalista de que é dever do homem branco proteger as mulheres árabes dos homens árabes. O resultado, segundo as palavras do próprio autor, é uma "história árabe", como mais um gênero que romantiza um período ou uma região, à semelhança dos faroestes e histórias de samurais.
No fim, a despretensão do autor em fazer algo mais profundo que essa apropriação cultural não deixa de ser de uma inocência tocante. Craig Thompson parece mesmo mais preocupado em desenhar e deixar uma história que venha a ser um pouco mais do que a recorrente (porém não exclusiva) superficialidade da linguagem do que não deixar arestas para discussões sobre sua visão americanizada sobre o islã. Não tem problema nenhum, Habibi continua sendo uma obra espetacular. GGGG1/2
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