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A entrada de Euclides da Cunha no sertão baiano para contar a história da Guerra de Canudos teria modificado até mesmo a forma de se fazer jornalismo no Brasil. O repórter que cobriu o confronto para o jornal O Estado de S.Paulo era distinto. Ao contrário dos cerca de vinte outros enviados à zona de conflito, Euclides quis, além de narrar os fatos com precisão, compreender o que se passava naquele pedaço do Brasil – e isso incluia desvendar o ambiente, o clima e principalmente se envolver com pessoas.

Essa postura de entrega, somada a seu texto rico e estiloso, foi responsável pelo pioneirismo do chamado Jornalismo Literário no Brasil. É o que defende Edvaldo Pereira Lima, pós-doutor em jornalismo pela Uni­versidade de Toronto e professor da Academia Brasileira de Jor­nalismo Literário (ABJL).

"Euclides teve um procedimento nunca antes observado. Naquela época os repórteres foram ciceroneados pelo exército, mas ele fazia incursões por conta própria para compreender o que estava acontecendo", explica Lima.

De acordo com o professor, três características presentes na obra definem Euclides como um jornalista literário. A primeira delas foi o mergulho na realidade do conflito, a chamada imersão. A segunda foi a sua visão do mundo. Culto e politizado, Euclides entendeu que o problema com o qual se deparava – e que era a sua pauta – não era sim­­plesmente uma coincidência de fatos. Havia, em Canudos, um contexto histórico, humano e geográfico. "Ele queria compreender textualmente aquela realidade dramática", explica o professor.

A terceira e intrínseca característica foi sua habilidade de escritor. Lima lembra de um trecho em que o autor descreve seu encontro com o corpo de um soldado. "Ele misturou suas habilidades de repórter e escritor. A descrição do cadáver, do ponto de vista literário, é brilhante", defende.

"O impacto do real foi grande. O repórter se deixou levar, não foi um robô, imune. Essa é outra marca do jornalista literário".

Essas passagens teriam escancarado também suas influências culturais. Há o naturalismo – que tem em Émile Zola (1840-1902) seu maior expoente – e do positivismo, corrente filosófica capitaneada por Auguste Comte (1798-1857).

Comprovando sua riqueza, Os Sertões quebra a cabeça de bibliotecários. É encontrado nas seções "geografia", "romance", mas poderia, então, também ser classificado como uma grande reportagem? De acordo com Lima, não.

"O obra apresenta alguns elementos de ficção, então não poderíamos enquadrá-la puramente como jornalismo. É o mesmo caso de A Sangue Frio, de Truman Capote. Mas Euclides cumpriu um papel decisivo ao demonstrar que é possível praticar a literatura da realidade de maneira competente sem recorrer apenas a recursos de ficção", explica o professor.

Já o jornalista, escritor e professor de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Arthur Dapieve não considera a obra como marco do jornalismo literário no Brasil. "Esse estilo só foi concebido após o estabelecimento da objetividade co­­mo meta jornalística. Os Sertões não é assim. Não há tanto rigor factual, até porque isso só se tornou uma exigência jornalística em meados do século 20", diz Dapieve.

A ficção presente na obra maior de Euclides da Cunha poderia explicar sua unanimidade. "Ela ajuda a tornar a obra legível. Sem isso, o livro seria um relatório de uma expedição militar ou uma tese sobre a situação de Canudos, ou as duas coisas, mas graças à ficção ele pode ser lido como um grande romance, com ação, emoção, drama", defende o jornalista. E a discussão continua.

Para o escritor Wilson Bueno – autor de A Copista de Kafka –, Euclides da Cunha "talvez tenha sido o Gay Talese do início dos novecentos do país".

É jornalismo, é literatura? Debates sobre a classificação de Os Sertões, mais de cem anos depois de sua publicação, esmorecem quando o legado da obra vem a tona. Aí, a opinião é uníssona. "Talvez nenhum outro escritor tenha deixado marcas tão fortes quanto Euclides", diz Edvaldo Pereira Lima, que foi convidado pela Universidade de Massa­chusetts, nos Estados Unidos, para colaborar em um livro sobre a história do Jornalismo Literário. Seu capítulo é sobre o gênero no Brasil e, claro, sobre Euclides.

Para Dapieve, a obra é ainda lembrada pelo testemunho que trouxe. "Embora o evento de Canudos não tenha sido único na nossa história, de certa forma ele simboliza todas as outras rebeliões reprimidas na ponta da espada."

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