O consagrado diretor de cinema de mistério, Alfred Hitchcock, não tinha muito apreço pelas histórias policiais que se baseavam no "Quem matou?", ou seja, que consistem numa caçada pela identidade dos assassinos. Preferia deixar claro para o espectador quem era, logo de cara, o assassino, e conduzir seu filme pela busca para descobrir a verdade. Essa foi também a escolha do escritor e apresentador Jô Soares em seu novo livro, As Esganadas.
Mais uma vez se apoderando de referências históricas e personagens reais aqui, ficcionalizados Jô ambienta a trama no Rio de Janeiro do final dos anos 1930. É lá que o macabro e esguio agente funerário Caronte, quando não está preparando algum morto para o velório, se empenha em uma única atividade: caçar e matar mulheres gordas, estufando-lhes receitas de doces goela abaixo uma tara desenvolvida a partir de um previsível complexo materno.
Os encarregados do caso o delegado Mello Noronha e o atrapalhado e tímido Valdir Calixto a princípio, sem qualquer pista sobre o assassino, veem sua sorte mudar quando recebem a inesperada ajuda de um verborrágico e filósofo confeiteiro português chamado Tobias Esteves nada menos que o Esteves sem metafísica, do poema "Tabacaria", de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa). O doceiro, que era policial em Lisboa, perde prestígio depois de participar no falso suicídio do ocultista Aleister Crowley e ser desmascarado. Como solução, vem para o Brasil tentar a vida em outra profissão, mas percebe que pode ser útil ao caso.
Para integrar o grupo, surge a poderosa figura feminina de Diana, uma intrépida e linda repórter que vive de aventuras: desde cobrir a Guerra Civil Espanhola quanto disputar as famosas corridas de baratinhas os carros monopostos que competiam no circuito da Gávea. O quarteto sai à caça do assassino do "caso das esganadas", como a mídia resolve batizá-lo, e cada um adiciona uma particularidade no humor de Jô Soares, que ainda incorpora à trama intenções nazistas na América do Sul e medicina alternativa.
Um romance policial sem o tradicional "Quem matou?" requer uma exímia habilidade de conduzir a narrativa sem seu principal potencial atrativo aos fãs do gênero, e nesse sentido, Jô Soares é bem-sucedido. Ágil e fluido, As Esganadas pode ser lido com facilidade em pouco tempo, e o leitor permanece conectado à história pela quase automática simpatia pelos personagens que, ainda que lineares, são dotados do carisma típico às histórias de humor.
Entretanto, o romance apresenta pouca novidade ao estilo já consagrado do autor, que permeia fatos propositalmente distorcidos e um humor particular a um contexto histórico. O humor aliás, é um tanto inconstante: alterna boas sacadas e piadas prontas. O resultado disso é um livro que diverte, mas incomoda pela obviedade de algumas anedotas. Além disso, quem tiver lido a máquina de fazer espanhóis, do escritor lusitano valter hugo mãe (assim mesmo, em minúsculas), vai estranhar a escolha e a personificação do Esteves sem metafísica, já ficcionalizado no livro do português como um ancião em um asilo.
Desconsiderando-se os clichês, As Esganadas é um livro que se salva pela imaginação do autor em misturar subtramas e personagens inusitados como o anão Rodapé, palhaço e cantor de ópera apaixonado por mulheres obesas quando todos servem ao propósito do plot principal. Nesse contexto, descobrir o assassino é mesmo secundário, ante à diversão que o romance proporciona na atrapalhada busca pela verdade. GGG
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"A gorda, tomada por um fervor quase religioso, se acerca da prateleira de doces. Chega-se aos pulos, como um passarinho seduzido pela serpente. Sua indecisão se manifesta de novo:
São tantos, meu Deus, e tão lindos!
Ela se inclina para cheirá-los, as narinas pulsando de prazer. A rua está deserta, não há por que se acanhar. Cordélia lambe o chantilly que cobre uma torteleta de morango. É nesse instante que Caronte a derruba sobre a prateleira esmigalhando os doces. Antes que ela se dê conta, ele tapa seu nariz repleto de creme com o lenço empapado em clorofórmio."
Trecho de As Esganadas, de Jô Soares.
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Serviço:
As Esganadas, de Jô Soares. Companhia das Letras, 264 págs., R$ 36. Romance.
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